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Tratado do purgatório

Clóvis não disse o motivo que o fez desistir de disputar a pré-candidatura

Por Clóvis Barbosa *

Aurélio Agostinho, ou santo Agostinho, era argelino, de Tagaste, uma pequena cidade situada no norte da África. Viveu de 354 a 430 depois de Cristo. Apesar da vida atribulada, contraditória e cheia de aventuras amorosas, uma coisa ninguém pode falar dele: que era hipócrita. Foi um filósofo que tratou, ao menos, de quatro temas: o pecado, o tempo, a Cidade de Deus e a controvérsia sobre o pelagianismo. Começou a vida religiosa optando pelas doutrinas maniqueístas, tornando-se um destemido defensor de suas ideias. Platão dizia que o mal não é algo, mas a ausência de algo. Agostinho criou o silogismo: os humanos são seres racionais. Para que sejam racionais, os humanos devem ter o livre arbítrio; isso significa que precisam ser capazes de escolher entre o bem e o mal; os humanos podem, portanto, agir bem ou mal; logo, Deus não é a origem do mal. Durante a sua militância na escola maniqueísta, ele dizia: “Fui seduzido e sedutor, enganado e enganador” (Confissões, tomo IV, cap. 1). Foi um apaixonado pelo estudo das estrelas, mas um inimigo figadal dos astrólogos: “Nunca acreditei naqueles embusteiros que se proclamam astrólogos e que dizem: isto se deve a Vênus, e aquilo a Marte. Se a data de nascimento realmente influísse na vida dos seres humanos, dois gêmeos deveriam ter o mesmo destino” (Confissões, tomo IV, cap. 3).

Aos dezesseis anos apaixonou-se por uma mulher bem mais velha que ele e com quem teve um filho, de nome Adeodato. Viveu com ela em concubinato durante longos doze anos. Namorou muito e entre uma cama e outra se descobriu cristão pela influência de santo Ambrósio, bispo de Milão. Tornou-se um ermitão após o seu batismo e foi morar num mosteiro onde escreveu as suas grandes obras: as Confissões, A cidade de Deus, a Trindade, a Doutrina cristã, o Sermão da montanha, as Cartas aos Romanos, Sobre a verdadeira religião e outras. Mas, mesmo na sua vida isolada, não deixou de se recordar do seu passado erótico, como dito em algumas partes de suas Confissões: “O desejo de amar e ser amado tornava-se maior quando unido à posse do corpo da amante” (tomo III, cap. 1); “Do desvio da vontade nasce a devassidão, da devassidão o hábito, do hábito a necessidade”; “Ame, e depois faça o que bem quiser”; “Atrevi-me a conceber desejos impuros até entre as paredes da Tua Igreja” (tomo III, cap. 3); “Ai de mim, não consigo dormir uma noite sequer sozinho” (tomo VI, cap. 15); “Deus meu Senhor, dá-me a castidade e a continência, mas não de imediato” (tomo VIII, cap. 7). Ainda nas Confissões reconheceu ser um ingrato com as noites de prazer e concupiscência amorosa que inundou a sua vida mundana: “Aos dezesseis anos não amava as mulheres, mas sim a ideia de amar”.

E continua: “(…) Então um belo dia contaminei a minha inocência com a imundície da luxúria e ofusquei o brilho do verdadeiro amor com o inferno do desejo e dos sentidos” (tomo III, cap. 1). Talvez por causa da sua vida boêmia, criou uma terceira alternativa entre o Céu e o Inferno: o purgatório. Vejam em Cidade de Deus: “Senhor, sejais misericordioso comigo: fui pecador e sei que não posso almejar o Paraíso, mas também sei que não fui mau a tal ponto de merecer o Inferno. Precisaria de algum lugar no meio, um lugar onde expiar os pecados de que sou culpado, para poder então ser recebido entre as almas dos beatos” (tomo XXI). Mas santo Agostinho também era um gozador: “O que é o tempo? Se ninguém perguntar, eu sei. Mas se tiver de explicar a quem pergunta, já não sei”. O óbvio de suas explicações era mais que ululante, pois, para ele, como ratifica Luciano de Crescenzo, em História da filosofia medieval, o passado não existe na medida em que já não é; o futuro não existe por ainda não ser; e o presente não existe enquanto é uma separação entre duas coisas que não existem. Enfim, para ele, só existem três tipos de tempo: o presente do passado, que é a memória; o presente do futuro, que é a esperança; e o presente do presente, que é a intuição. Mas, tirando esse passado de orgia e de muitos pecados, a verdade é que ninguém pode alegar que santo Agostinho não possuía o dom do arrependimento.

A sua vida sofreu uma guinada de 180 graus após assumir o bispado de Hipona (hoje Argélia) e de se dedicar à leitura e a escrever suas obras. A dedicatória de Confissões é uma mistura de humildade, pleito ao perdão e sinceridade: “Recebe este livro de minhas Confissões que tanto desejaste. Contempla-me, para que não me louves mais do que sou. Julga-me não pelos que os outros dizem de mim, mas pelo que eu digo nelas. Contempla-me nelas e vê o que fui, na realidade, quando estive abandonado a mim mesmo”. A confissão, como se sabe, é uma autoacusação e, do ponto de vista religioso, ela deve ser livre, espontânea, sincera e acompanhada do firme propósito de não tornar a cometer os mesmos erros. Santo Agostinho, com as suas Confissões, foi um homem que procurou avançar entre os seus erros e acertos; alguém que, como dizia Jean Paul Sartre, pensou contra si mesmo. Ao escrever a sua obra, ele não estava interessado em comprovar a história de sua vida, mas penitenciar-se perante Deus, ou melhor, quis renunciar a si mesmo para estar com Ele, o Pai. E este encontro só se dá quando vencidas as forças da sua natureza. O purgatório seria o local preferido para purgar os seus erros. Santo Agostinho é uma das grandes vertentes do pensamento cristão.

Nas suas confissões ele foi o seu próprio juiz e, onde lhe faltou sabedoria, fez minucioso exame de si. Como seria bom que todos conhecessem a sua obra e pudessem refletir sobre as suas lições de vida. Lembro-me que certa vez, assistindo ao filme Crimes e Pecados, o personagem vivido por Woody Allen dizia que “nós somos a soma das nossas decisões”. E é verdade. Se a estrada da vida é longa, o tempo é curto. Nunca é tarde para o grande encontro conosco. Mas, voltando ao purgatório, a Bíblia se encarrega de sobre ele falar em várias passagens, como no Evangelho de Mateus, no de Lucas e na Primeira Carta aos Coríntios. O catecismo da Igreja Católica afirma textualmente que o purgatório é uma “purificação final” para aqueles que querem chegar ao céu e “morrem na graça e na amizade de Deus, mas não estão completamente purificados, embora tenham garantida sua salvação eterna”. Ou seja, é uma espécie de estágio onde os mortos que cometeram pecados graves têm a oportunidade de purificar os seus maus hábitos adquiridos ao longo da vida, até porque, como diz o livro do Apocalipse, no céu jamais entrará nada de impuro. São Nicolau Tolentino é o patrono das almas do purgatório e o dia 2 de novembro é dedicada a elas. Muita história é contada a respeito e tem até uma santa que ainda em vida conheceu o purgatório, o céu e o inferno.

A santa que fez o tour foi a polonesa Faustina Kowalska, chamada de “a mensageira da Divina Misericórdia”. Em seus escritos, diz que o seu anjo de guarda lhe pediu para segui-lo e ela deparou-se com um local cheio de fogo e almas que sofriam. Ela pensou que era o inferno, mas não, era o purgatório. O local a deixou penalizada com o sofrimento das almas, mas ouviu a voz do Senhor que lhe disse: – Minha misericórdia não quer isso, mas minha justiça pede por isso. Quem vai a Roma deve conhecer o Museu das Almas do Purgatório, que fica dentro da Igreja do Sagrado Coração do Sufrágio, ali pertinho do Vaticano. Lá você encontra comprovações, em tese, da existência desse espaço no além, onde, como diz Santa Catarina de Siena, essas almas que foram libertadas dos seus sofrimentos nunca se esquecerão dos seus benfeitores na terra, funcionando como intercessoras por eles diante de Deus. Tanto que essas pessoas, quando morrerem e chegarem ao céu, serão recebidas por essas almas reabilitadas. Um livreto de apenas 70 páginas, escrito por Santa Catarina de Gênova (1447-1510), Tratado do Purgatório, ajuda-nos a entender os caminhos que levam os pecadores a estagiar provisoriamente ou definitivamente tanto no purgatório como no inferno.

A obra, certamente, é um estímulo poderoso para os católicos que pretendem penetrar neste alto mistério. Sem hipocrisia, no entanto, como diz Shakespeare, Os homens deviam ser o que parecem ou, pelo menos, não parecerem o que não são. No Talmud, coletânea de livros sagrados do judaísmo rabínico – e aqui não quero entrar na briga com a Bíblia – há um texto de Jmmanuel, no qual encerro esse meu ensaio: Ai de vós, escribas e Fariseus, hipócritas, vós sois semelhantes aos sepulcros caiados que mantém pensamentos e discursos limpos e brilhantes por fora mas, por dentro, são cheios de rapina e ganância. Limpai primeiro o que está no interior do copo de teus pensamentos e ganâncias para que então o lado de fora possa se tornar puro. Parecem bonitos por fora, mas, por dentro, são cheios de fedor, de ossos, de imundícies e podridão! Então, do lado de fora pareceis piedosos e religiosos bondosos diante das pessoas, enquanto que por dentro, vós sois cheios de hipocrisia, engano, iniquidade, falsidade e transgressão.

* É advogado (e-mail: melo.clovis@uol.com.br)

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2 Comments

  1. Saracura disse:

    Os ensaios de Clóvis Barbos são “definitivos”
    a meu ver

  2. Luiz Carlos Lopes Madeira disse:

    Clovis. Está primoroso. Parabéns.
    Abraço. Bom domingo. Beijo

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