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Senhorita Paula

Por Amaral Cavalcante *

Não sei quem lhe concedeu a ousadia de me telefonar num sábado pela manhã, em pleno carnaval. Ainda mais com esse papo de conta de cartão cujo pagamento não consta nos seus arquivos. E eu sei lá! Se não paguei, pago depois com todos os juros e correções monetárias, que eu não sou homem de dever na praça. Prejuízo, garanto que você não vai ter. Pago, e com fé em Deus ainda lhe gratifico com o troco.

Mas minha linda, sábado de carnaval não é dia de arrochar freguês cobrando fatura.

É dia, no caso da minha velhice, de estender o colchão ao sol para desanuviar das pragas, entupir o congelador de latinhas e abrir aquele livro de Lautréamont, guardado desde 98 na estante dos “quem sabe um dia…”.

Esta sim, uma dívida vergonhosa que me torna velhaco na bodega da poesia.

Pois eu estava nestes misteres quando você tocou. Pensei que eram os malucos querendo festa e já ia com a dispensa na ponta da língua:

– “Não, vou me recolher… na quaresma eu brinco”.

Mas qual, era você e eu a atendi com quatro pedras na mão, até reconheço, mas quem mandou? Eu não a conheço nem você a mim. Imagino você dentuça, um coque amarfanhado nos cabelos cor de palha e belas unhas pintadas num vermelho cruel, discando inadimplentes neste Brasil endividado, em pleno carnaval.

Sua voz chata de aeroporto, carioca demais e lânguida como se quisesse me pegar pela cueca, aquele bolodoro treinado me chamando de “Senhor Antonio” ficou chato, interminável e ameaçador.

Sobrou para mim a solidão do seu tristonho carnaval, senhorita Paula! Até me deu vontade de ficar lhe ouvindo por solidariedade, mas tem horas, como a manhã de um sábado de carnaval, em que eu não tenho paciência para certos ruídos que insistem em invadir minha cidadela.

Bem assim eu estava, Paulinha, guardado da alegria geral, mas cheio de baticuns em volta, doido por uma nesga de silêncio onde acomodar o enfado dos meus quatrocentos anos na folia.

Foi a hora errada, mas quem mandou?

Eu devia era ter lhe convidado para sair, lhe oferecido o consolo do mar na doce Atalaia onde eu lhe ensinaria a fazer beijus de tapioca, a conversar com o pescador Caboclinho sobre a proficiência de quantos molhos de coentro precisa uma moqueca de arraia. Essas coisas que aqui são de graça, sem débitos na fatura.

Sabe, eu não sou sempre assim, tão bruto. Noutras horas eu sei impostar a voz ao telefone como ninguém e à distância até ronronar carinhos num ouvido de mulher. Você não sabe o demônio enganador que eu sou!

Mas num sábado de carnaval, cobrança de telemark não tem perdão: rodei a baiana, bati chipanzé no peito, invoquei belzebu. Xinguei a mãe da presidente e quase chamo pro murro o capitalismo selvagem:

“Porra de cartão, minha filha, caralho de Hipercard, quem você pensa que é?”.

Aproveito para lhe informar que pagarei na próxima quarta feira de cinzas, no caixa eletrônico mais perto, a conta que nos aproximou neste feriadão carnavalesco.

Perdão pelo mau jeito, senhorita Paula. E ligue pra mim na sexta, quem sabe?

* É jornalista, poeta e cronista de mão cheia.

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