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Mestre Puma: 45 anos de capoeiragem

Cicero Cunha Bezerra*

Em 2022 a capoeira sergipana está em festa. O grupo de maior expressividade no campo da promoção, prática e reflexão sobre essa arte/luta brasileira, “Os molas”, completa 45 anos de existência. Mantendo a prática que caracteriza o trabalho de Mestre Lucas (Luiz Carlos Vieira Tavares), alguns eventos já estão acontecendo e acontecerão ao longo desse ano. Fundado em 1977, em “ Os Molas” já foram formados vários professores e Mestres que se espalharam, criando seus grupos, por vários Estados brasileiros e países do mundo. Um dos participantes importantes, nas origens do grupo, é Paulo César Almeida do Prado, mais conhecido como Mestre Puma.

Mestre Puma

Nascido no Rio de Janeiro, registrado na Bahia e habitante de Aracaju, dos onze aos dezoito anos de idade, quando ingressa na Marinha de Guerra, Mestre Puma, também completa, em 2022, quarenta e cinco anos de capoeiragem. Filho da sergipana Mirian Almeida do Prado – neta de parte de mãe de indígena Xocó -, e do carioca Paulo Serra do Prado, neto de imigrante espanhol com sangue negro de Minas Gerais, Mestre Puma traz a mestiçagem brasileira que também caracteriza a capoeira em seu longo processo histórico.

Como pesquisador que sou, interessado no papel da capoeira na constituição da cultura brasileira, em particular do Nordeste, tive o prazer de conversar com Mestre Puma sobre a sua trajetória, formação e trabalhos acadêmicos convertidos, ao longo dos anos, em palestras, cursos e livros, além de participações em entidades como Presidente de Federação Sergipana de Capoeira-FSC, Diretor Técnico da Confederação Brasileira de Capoeira – CBC, Diretor Regional Nordeste da CBC, Conselheiro Técnico da Federação Internacional de capoeira – FICA, Vice-presidente fundador da Associação Nacional de Árbitro de Capoeira e Mestre do Conselho Superior de Mestre CSM/CBC/FICA. Nossa conversa regada ao som do berimbau e sob o olhar atento da lua cheia de agosto, pode ser resumida nas seguintes palavras.

  Como muitos capoeiristas, a exemplo de Mestre Pastinha, o seu vínculo com a capoeira começou na infância em um “embate entre meninos”. Aluno do Colégio dos Padres, no bairro da Curva Grande, em Salvador, Paulo descobriu a capoeira em uma queda: “briguei e cai sentado”. Foi quando ouviu uma voz: “sai fora, ele é da turma da capoeira da escola…”; desde então, Paulo sentiu-se tocado e, graças ao gosto do pai, jornalista, boêmio e amigo da malandragem de beira de cais, Paulo assistia às rodas do Mercado Modelo onde jogava o Mestre Caiçara e outros. Detalhe curioso, a família era vizinha de mestre Bimba, na ladeira do nordeste de Amaralina, mas lamentavelmente, o menino não conheceu a maior lenda da Capoeira Regional.

Foi somente com sua vinda para Aracaju que Paulo Prado tomou contato, na ocasião de uma comemoração do dia do folclore no colégio Prof. Rollemberg Leite, com Mestre Lucas e o recém criado grupo Os Molas.  Começava, assim, sua efetiva aprendizagem e parceria que permanece até os dias de hoje. Nos anos oitenta, em função da sua entrada na Marinha brasileira, o já capoeirista segue para Salvador e o que era memória de menino, se concretiza em jogo de rua. Uma vez mais,  o Mercado Modelo, considerado a “Meca da capoeira”, é palco de encontros com  grandes Mestres como Cacau, Coringa e Dois de Ouro.

Outro momento marcante da sua vida se deu, posteriormente, no Rio de Janeiro, com o Mestre Pedro Ziza. Juntos fundaram o grupo Resistência rendendo uma colaboração de trinta anos à frente deste grupo. Para Mestre Puma, capoeira é oxigênio, fonte de onde emana a vitalidade da vida que impulsiona variados interesses que perpassam da teologia, à arquitetura, ao urbanismo, à educação e, mais recentemente, às Ciências da religião, área na qual defendeu a dissertação de mestrado (2022), a primeira no Brasil, sobre as relações entre os simbolismos religiosos oriundos do candomblé, do cristianismo e do judaísmo na obra de um dos mais influentes e importantes Mestres da Capoeira Regional de Bimba: Angelo Augusto Decanio Filho, Mestre Decanio.

Para Puma capoeira e religião, em sentido amplo do termo, são áreas de conhecimentos complementares que dialogam em um processo de hibridização que exige compreensão e reconhecimento das suas diferenças e aproximações. Só assim, ancestralidade e diversidade de credos, que compõem o vitral de crenças na roda, podem encontrar dinamicidade e harmonia sem exclusão ou redução da capoeira a um aspecto específico.

  O papel de Mestre Puma na disseminação da capoeira em Sergipe, além de sua já citada participação como integrante do grupo Os Molas, ministrando aulas nas segundas, quartas e sextas-feiras, começou no CSU na rua Alagoas quando ministrou aulas tendo como primeiro aluno matriculado Álvaro Machado, hoje Mestre Alvinho Sucuri do Grupo de Capoeira Mocambo e outros como Cheio de enfeites, hoje Mestre Toinho.

Em 1980, Paulo Puma participou do importante 1º Seminário Regional de Capoeira em Salvador, BA, onde conhece grandes Mestres como Cobrinha Verde que, segundo ele, “insinuou vários golpes como a banda trançada e rezas”, Curió de quem ouviu relatos sobre as suas armas e truques da capoeira; outros Mestres emblemáticos da história da capoeira também foram contactados como Braz, Bom Cabrito, Marcelino Mau, Itapoan, João Pequeno e João Grande de Pastinha. No seminário Puma teve a oportunidade e o privilégio de jogar em uma roda movida por mestres como Gigante, no gunga, Caiçara e seu apito cantando para os mestres Nô e Dmola.

Um jogo descrito por ele como “alucinante de contorções desequilibrantes em uma roda inusitada” com direito a um “colar de força” aplicado pelo mestre Braz, aluno de Bimba, no também espetacular Canjiquinha. Memórias que, certamente, nos conduzem ao núcleo da capoeiragem em seus mitos, ritos e fatos.

Das lembranças deste encontro, marcado pela a ausência/presença do Mestre Pastinha, já recluso em sua casa, Puma se lembra da imagem simbólica da esposa do mestre angoleiro, Dona Romélia, que servia o cafezinho nos intervalos dos seminários. Dos frutos dos GTs (Grupos de trabalhos), Puma, em conjunto com os Mestres Cobrinha Verde, Curió, Marcelino e Bom Cabrito, propuseram algumas diretrizes para a capoeira da Bahia. Uma das suas sugestões foi a construção de um tablado, em círculo, que ficaria em frente ao Mercado Modelo como um lugar especifico para o jogo de roda. Era a proposta de um jovem de apenas 17 anos que circulava em meio aos grandes Mestres. A ideia foi aprovada e hoje faz parte do cartão postal do Mercado Modelo de Salvador.

Em Aracaju, Mestre Puma, em parceria, uma vez mais com Mestre Lucas, organizaram o 1º Seminário de Capoeira de Sergipe no CSU. Um evento importante que deu início às primeiras graduações e nivelamento que tiveram, como primeiro instrutor formado, Giovane, hoje Mestre Touro do Grupo Cordão de Ouro de Sergipe. Também é preciso destacar suas contribuições para o desenvolvimento da nomenclatura da Capoeira Desportiva que possibilitou a inscrição capoeira no COB desde 1988.

No que se refere à produção intelectual do Mestre Puma destacam-se dois livros: o primeiro chama-se “O Trivial da Capoeira” escrito logo após a sua formação em Mestre, pela mão de Mestre Ziza, em 1996. Nele, Puma apresenta a Nomenclatura Oficial da Capoeira Desportiva. Um trabalho realizado com o seu irmão também capoeirista, Mestre Canelas. O resultado é lembrando por ele como “surpreendente” diante da plateia de mestres que ocupavam o Congresso Técnico da Confederação Brasileira de Capoeira (CBC) e a Federação Internacional de capoeira (FICA).

A apresentação da Nomenclatura contou, também, com a participação de um voluntário da plateia, Mestre Passarinho de Goiânia, hoje Mestre Suíno.  Como ressaltado, a Nomenclatura de Golpes encontra-se nos registros do COB e COI como a primeira nomenclatura de movimentos da capoeira desportiva.

Em 2019, um segundo livro é lançado e, desta vez, em comemoração ao centenário da capoeira Regional do mestre Bimba. Nele, Mestre Puma apresenta a Capoeira Regional mediante uma ousada visão hermenêutica que a faz berço do que ele chama de “capoeira secularizada”. Uma proposta que passeia pela história do Brasil, pelos ritmos dos batuques, passando pelo candomblé, pelo samba de roda até chegar na capoeira.

Indagado sobre o passado, o presente e o futuro, Mestre Puma revela o aspecto de abertura para novas experiências, sem desconsiderar o passado, mas dialogando com um tempo no qual tradição e inovação são faces inevitáveis de uma realidade sem fronteiras em que a tecnologia transforma comportamentos e o jogo pode se dar tanto na técnica dos movimentos corporais nas rodas, como nos “likes” das redes sociais. O importante, no entanto, é a percepção da capoeira como ferramenta de educação. Como forma de intervenção político-social que abraça a cultura brasileira e faz da sua força histórica, esporte, lazer e projetos sociais. Longe das padronizações que enrijecem, para Puma não é necessário transformar a capoeira em esporte olímpico, pois ela já é, diz o Mestre.

Atualmente, Puma continua respirando o seu oxigênio vital em Aracaju à frente da Academia Brasileira de Capoeira (ABC) e, como um incansável projetista, marinheiro, artesão de barcos e de ideia, pretende transformar a ABC em uma referência nos estudos e treinos de capoeira sob forma de “disciplina, especialização ou até mesmo uma faculdade”, sentencia o Mestre. A nós, amantes da ginga, resta-nos acompanhar o trabalho dos mestres que fazem da capoeira uma filosofia de vida, uma atividade transformante e transformadora. O Estado de Sergipe está de parabéns e bem representado no cenário de uma manifestação legitimamente brasileira e que, lamentavelmente, ainda, não ocupa o seu lugar de merecimento no Brasil. Aguardemos mais novidades.

*Professor do Departamento de Filosofia/UFS

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