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Torturado na ditadura, Milton Coelho viveu 48 anos na escuridão

Marcos Cardoso

O petroleiro Milton Coelho de Carvalho tinha 34 anos quando foi vítima da violência que o deixou cego. Viveu os 48 anos seguintes na escuridão. Uma das vítimas mais conhecidas das torturas sofridas na Operação Cajueiro, em fevereiro de 1976, o homem que perdeu a visão porque ousou lutar contra a ditadura militar morreu nesta quarta-feira, dia 17 de abril, aos 82 anos. Foi vencido por uma pneumonia na UTI do Hospital Primavera, após uma semana internado.

Nascido em 1942, em Salvador, Milton migrou com a família para Aracaju quando ainda era menino. O pai, comunista, fugia das constantes perseguições políticas que sofria na Bahia. Milton Coelho estudou no Ateneu e foi aprovado em concurso público para a Petrobras, onde, a partir de 1966, foi encarregado do almoxarifado. Segundo o professor Afonso Nascimento, na estatal do petróleo era responsável, inclusive, pela guarda do estoque de dinamites. Mas era um homem pacífico.

Membro do Partido Comunista Brasileiro, o Partidão, a prisão no 28 BC, na Operação Cajueiro, foi a terceira que sofreu desde 1964. Em janeiro de 2016, o primeiro a prestar depoimento à Comissão Estadual da Verdade Jornalista Paulo Barbosa de Araújo, ele narrou assim:

“Eu fui levado para as dependências laterais do 28º Batalhão de Caçadores aqui em Aracaju e fui estupidamente torturado. Tenho marcas no pulso, pois fui algemado, tomei choques elétricos, pontapés nas costelas, enfim, foi uma barbaridade inconfessável. Após 50 dias preso e depois de passar uma semana sendo torturado, perdi a visão imediatamente quando sai de lá”. Milton passou um mês num hospital de Salvador, depois foi encaminhado para Belo Horizonte onde fez tratamento, cirurgias. Em 1º de novembro de 1977, foi aposentado por invalidez.

“É necessário que a história seja conhecida. É preciso que sejam debatidos os fatos passados, que não puderam ser expostos e comentados, para que se crie condições democráticas e que, assim, não haja reversão no clima de democracia que estamos vivenciando hoje. É sabendo da história que se educa politicamente a população”, disse, destacando o papel da Comissão da Verdade.

Um ano atrás, em março de 2023, Milton Coelho recebeu o título de cidadania aracajuana, iniciativa da vereadora Professora Ângela Melo (PT). Ela também morreu em consequência de uma pneumonia, em outubro, no mesmo hospital.

Operação Cajueiro

A ditadura militar atingiu o máximo da brutalidade em Sergipe com a Operação Cajueiro, assim cognominada pelo Exército a ação iniciada no dia 20 de fevereiro de 1976, véspera do Carnaval. Uma força especial vinda da Bahia, sob as ordens do general linha-dura Adyr Fiúza de Castro, comandante da 6ª Região Militar, sediada em Salvador, prendeu arbitrariamente 25 sergipanos, processando 18 deles, além de processar também o então deputado estadual Jackson Barreto, que não chegou a ser preso. Essa força especial reunia elementos do temível DOI-CODI, do DOPS e da Polícia Federal e agiu em Aracaju sob as ordens do tenente-coronel Oscar Silva. O comando local foi afastado.

Milton Coelho depondo na Comissão da Verdade

A acusação, que nem cabia a alguns deles, era de serem ligados ao proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB). A operação obedecia a uma ordem nacional que era a de acabar com o Partidão, a exemplo das demais siglas clandestinas. No bojo desse recrudescimento da onda anticomunista, foram assassinados nas celas do DOI-CODI, em São Paulo, o jornalista Wladimir Herzog, em outubro de 1975, e o operário Manuel Fiel Filho, em janeiro de 1976.

“Em início de 1976, enquanto as demais organizações de esquerda estavam praticamente desativadas (o PC do B havia sido vencido na sua experiência no Araguaia em 1974), o PCB, além de possuir representantes na Assembleia Legislativa (Jackson Barreto) e na Câmara de Vereadores (Jonas Amaral), praticamente controlava o Sindicato dos Petroleiros, o Sindicato dos Bancários, alguns centros acadêmicos da UFS e o DCE. Tinha militantes ativos junto aos trabalhadores rurais e exercia alguma influência em diversos órgãos da sociedade civil e do Estado. Nas circunstâncias de então, era uma presa invejável para qualquer sigla clandestina, fato que os militares não ignoravam. Daí a intensificação das perseguições”, conta o historiador Ibarê Dantas, em “A Tutela Militar em Sergipe – 1964/1984”.

Dentre os presos em Sergipe estavam pessoas hoje conhecidas, e vivas para contar a história, como os ex-vereadores Antônio Góis e Marcélio Bonfim, e o advogado Wellington Mangueira. Este, ainda debilitado por torturas e sevícias que sofrera ao lado da mulher, Laura Marques, em 1973, foi um dos primeiros a serem soltos, supostamente após assinar uma carta renegando a doutrina do comunismo — coisa que ele garante jamais ter feito.

“No Quartel, segundo depoimentos de alguns deles, colocavam um capuz que pressionava fortemente os olhos com borracha, despiam-no e, algum tempo depois, vestiam um macacão. Submetiam a exame médico, trancavam numa cela incomunicável, e realizavam os interrogatórios entremeados de torturas, cujo nível dependia do estado de saúde e da capacidade de resistência do indivíduo (uma das curiosidades dos inquisidores era detectar onde se realizavam as reuniões clandestinas, para respaldar a acusação). Alguns que reagiram à prisão já foram recebidos debaixo de tapas. Quase todos teriam sofrido pancadas na cabeça, ‘telefones’, choques nas partes mais sensíveis do corpo, da língua aos testículos, bem como tentativas de afogamento, golpes na altura dos rins de ambos os lados do corpo, entre outras sevícias (alguns sergipanos teriam participado ativamente dessas operações, entre os quais o capitão Morais e até juízes de futebol ligados ao Exército: Siqueira, Barreto Góis, Cruz e Sargento Souza). Decorridos cerca de cinco a sete dias de padecimentos, os prisioneiros puderam comunicar-se com os colegas. Um deles, Milton Coelho de Carvalho, quem mais resistiu às torturas, quando lhe foi retirado o capuz, além das marcas de ferimento no rosto, comum a quase todos, estava com deslocamento incurável de retina. As três cirurgias posteriores a que foi submetido e os tratamentos demorados jamais lhe restituíram a visão”, relata Ibarê Dantas.

Relação dos presos na Operação Cajueiro em 1976

NOME PROFISSÃO
Antônio Bitencourt Ferroviário
Antônio José de Góis Estudante e bancário
Asclepíades José dos Santos Vendedor ambulante
Carivaldo Lima Santos Ferroviário
Carlos Alberto Menezes* Advogado
Delmo Naziazeno Agrônomo
Durval José de Santana* Pedreiro aposentado
Edgar Odilon Francisco dos Santos Serventuário
Edson Sales Pedreiro
Elias Pinho de Oliveira* Advogado
Faustino Alves de Menezes Pequeno comerciante
Francisco Gomes Filho (enviado do PCB) Pedreiro
Gervásio Santos* Jornaleiro
Jackson de Sá Figueiredo Advogado
João Francisco Oséa Pequeno comerciante
João Santana Sobrinho* Advogado
José Soares dos Santos Agricultor
Luiz Mário Santos da Silva Agrônomo
Marcélio Bonfim Rocha Funcionário Público
Milton Coelho de Carvalho Funcionário da Petrobras
Pedro Hilário dos Santos Ferroviário
Rosalvo Alexandre Lima Filho Agrônomo e funcionário público
Virgílio de Oliveira (Juca) Ferroviário
Walter Santos* Professor e funcionário público
Wellington Dantas Mangueira Marques* Advogado

*Não processados – Fonte: Ibarê Dantas, “A Tutela Militar em Sergipe – 1964/1984”

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1 Comments

  1. José Vieira disse:

    Um importante resgate histórico

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