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Tortura e morte como política de Estado

Marcos Cardoso *

Sempre houve dúvidas sobre quantos assassinatos foram atribuídos ao Estado em razão da repressão política durante a ditadura militar. Em dezembro de 2014 a Comissão Nacional da Verdade encerrou um pormenorizado trabalho de dois anos e sete meses e entregou um relatório de mais de 4 mil páginas onde cita 434 mortos e desaparecidos, com ficha detalhada sobre cada um deles, incluindo circunstâncias da morte ou desaparecimento. E responsabiliza 377 agentes públicos por violações de direitos humanos, sem poupar os generais que se tornaram presidentes da República durante o período.

O Relatório, o mais completo retrato sobre crimes cometidos pela ditadura, afirma que tais violações eram política de Estado. Como a CNV foi instalada, em maio de 2012, para examinar e esclarecer violações de direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988, há 12 assassinatos que não se relacionam diretamente à ditadura implantada em 1964.

Os primeiros crimes associados à ditadura militar são dos estudantes Ivan Rocha Aguiar e Jonas José Albuquerque Barros, mortos no Recife no dia 1º de abril de 1964, quando protestavam contra a deposição do governador pernambucano Miguel Arraes. O primeiro era da juventude comunista do PCB. No mesmo dia, houve um atentado em Governador Valadares com duas vítimas, Otávio e Augusto da Cunha, pai e filho que seriam simpáticos à reforma agrária, e duas mortes de pessoas no Rio de Janeiro: da dona de casa Labibe Elias Abduch, que buscava no Clube Militar informações sobre um filho, e de Ari de Oliveira Mendes Cunha, que participava de manifestação no Centro.

Era o começo da longa noite de terror que prostrou o Brasil por 21 anos. O documento da CNV expõe com os exemplos das vítimas que as diversas classes sociais e categorias profissionais sofreram com a perseguição implacável dos agentes da ditadura. E, ao contrário do que erroneamente se pensa, militares também foram vítimas.

O tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro foi o primeiro militar morto em decorrência da repressão aos opositores após o golpe. Ele foi metralhado dentro do próprio gabinete, em Porto Alegre, executado por um colega oficial da Aeronáutica por recusar-se a apoiar o golpe militar que derrubara o então presidente da República João Goulart. Logo, outros militares também foram mortos pelo regime.

Camponeses, ferroviários, operários, funcionários públicos, profissionais liberais e religiosos, a ditadura não poupava ninguém. O sergipano de Laranjeiras Lucindo Costa, servidor público em Santa Catarina, onde militava no PCB, desapareceu após fazer uma viagem a Curitiba em julho de 1967. Ele tinha 48 anos, era casado e pai de seis filhos. Já havia sido preso duas vezes como subversivo. Posteriormente, a esposa Elisabeth Baader recebeu a informação de que ele morreu atropelado e foi enterrado como indigente.

Há o caso emblemático do estudante Edson Luiz Lima Souto, que morreu no dia 28 de março de 1968, aos 18 anos, após ter sido atingido por disparo de arma de fogo durante uma manifestação no interior do restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro.

O padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto, pernambucano, 28 anos, era um perseguido do Comando de Caça aos Comunistas. Numa noite de maio de 1969, após uma reunião com jovens e pais de alunos, foi visto com três homens entrando numa Rural. O corpo foi encontrado na manhã seguinte numa sarjeta, com marcas de tortura.

Religioso vitimado pelos militares mais conhecido foi o frei Tito de Alencar Lima, que se suicidou em agosto de 1974, no Convento Sainte Marie de La Tourette, na França. As sevícias que sofreu o marcaram na alma. Preso em 4 de novembro de 1969, em uma operação realizada pela polícia de São Paulo contra os religiosos dominicanos acusados de apoiarem Carlos Marighella, Tito foi levado para o DOPS-SP, onde permaneceria por aproximadamente 40 dias. Torturado pessoalmente pelo delegado Sérgio Fleury, foi enviado ao presídio Tiradentes na primeira quinzena de dezembro.

Em seguida, no dia 17 de fevereiro de 1970, foi levado para a sede da Oban, embrião dos Destacamentos de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), onde enfrentou o período mais duro de torturas, sendo submetido a espancamentos, choques elétricos, “telefones” e pau-de-arara. Mais que os seguidos dias de interrogatórios violentos, Tito denunciou o processo de desconstrução de sua subjetividade. Seus torturadores gritavam contra a Igreja Católica e acusavam-no de ter abandonado os ensinamentos do evangelho, de ser terrorista e homossexual.

O frade dominicano Xavier Plassat, que conviveu com Tito na França, lembrou o quanto ele viveu atormentado pelas frequentes acusações de traição a que foram submetidos os religiosos que se engajaram na defesa dos direitos humanos e na resistência ao autoritarismo e pelo receio de ter delatado os irmãos religiosos. “Depois das dores, ele teme ter falado demais e entregue novas vítimas aos torturadores”, disse.

Esses são só alguns dos 434 casos didaticamente relatados pela Comissão Nacional da Verdade, com as seguintes conclusões e recomendações: “Diante das investigações realizadas, conclui-se que morreu em decorrência de ações perpetradas por agentes do Estado brasileiro, em contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela ditadura militar, implantada no país a partir de abril de 1964. Recomenda-se a continuidade das investigações sobre as circunstâncias do caso, para a identificação e a responsabilização dos demais agentes envolvidos.”

Além de enumerar as vítimas e os torturadores, o documento faz 29 recomendações, entre elas a desmilitarização das Polícias Militares e a responsabilização criminal de torturadores e agentes públicos, o que é impedida pela Lei de Anistia, de 1979. O Supremo Tribunal Federal votou pela manutenção da Anistia, também defendida então pela presidente Dilma Rousseff, que foi perseguida e torturada na ditadura.

“A verdade não significa revanchismo, não deve ser motivo para ódio ou para acerto de contas”, afirmou a presidente. Como ela prometeu, o Estado brasileiro deveria se “debruçar” sobre o relatório. Para não se esquecer que as marcas do passado ainda estão bem presentes: a ditadura acabou, mas no Brasil ainda se tortura e mata em nome do Estado. 

Marcos Cardoso é jornalista, autor de “Sempre aos Domingos: Antologia de textos jornalísticos”.

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