Veja as melhores promoções dos supermercados sem sair de casa
20 de janeiro de 2023
Mitidieri quer apoio de Lula para ampliar o porto de Sergipe
20 de janeiro de 2023
Exibir tudo

O sonho de uma Polícia cidadã

Por Eduardo Marcelo Silva Rocha *

A resolução de um problema exige, preliminarmente, admitir sua existência – por mais óbvio que pareça. É possível que você se engane, sem culpa, como infelizmente ocorreu com um caro amigo – há alguns anos – que teve a vida abreviada por tratar uma cirrose como se fosse câncer. O erro não foi dele, que morreu, mas do diagnóstico médico. O amigo e família lutaram bravamente. Sabiam que existia um problema e tentaram resolvê-lo.

Mas em sede de administração pública, não se pode apenas “culpar  o médico”, mas todos os responsáveis pela cadeia administrativa que replica, propositadamente por ignorância, ausência de profissionalismo ou mesmo intencionalmente (por motivos pessoais), uma vez que ao outorgar poderes acima dos direitos da população, a administração prescinde ser controlada para coibir excessos.

E não adianta estrebuchar, se não o maior, um dos maiores Golpes de Estado da História do mundo ocidental não teria sido possível, exatamente pelo fato do seu artífice não apenas desobedecer o Direito Romano, marchado sobre Roma com suas legiões, no auge da sua popularidade, após subjugar o consórcio gaulês e capturar seu Rei Vercigetórix – hoje Herói nacional da França. Ao atravessar o Rubicão, lançando “a sorte”, César tomou a República Romana para si, tornando-se o ditador absoluto e lançando uma guerra civil.

Carlos Magno Nazareth Cerqueira foi um desses que buscou entender as limitações da Polícia Militar e tentou propor soluções factíveis para tal. Negro, filho de família pobre, teve uma lúcida educação que não somente o direcionou a ser uma pessoa digna, mas também o levou aos quadros da Polícia Militar, vez que seu pai não apenas preocupava-se com sua educação formal, mas também o preparava para a vida, quando lhe apresentava uma lista de profissões mais tolerantes com pessoas negras.

Em sua trajetória, Nazareth manteria a coerência e, por isso, não rogaria-se em enfrentar os desafios decorrentes tanto do preconceito racial, quanto de se dispor a pensar dentro de uma corporação na qual muitos integrantes gostam de referir-se pejorativamente a quem reflete de “filósofo”,

Ingressou na corporação em meados dos anos 1950, na Polícia Militar do Distrito Federal, que à época fundava-se no Estado da Guanabara. Era o período entre duas ditaduras e após a Segunda Guerra, quando gestava-se o sistema de segurança pública moderno, parido em fins dos anos 1960.

Nazareth não se conformava com o status quo e buscava realizar seu serviço por novos meios, pois ele entendia qual a proposta da polícia moderna, delineada no início do século XIX NA Europa e no Japão, consagrado por William Peel, na Inglaterra.

Por isso, fugindo da truculência, ao enquadrar um preso, dizendo-lhe que deveria lutar para sair do crime e ser pessoa melhor, Nazareth foi (punido?) retirado do serviço “de rua”. Já em seus primeiros anos de serviço Nazareth repudiou o excesso de força, algo que declarava não gostar:

Será que não posso ser um bom policial sem usar de violência? A violência pesava. Ficava em conflito. Não gostava de saber que os soldados não gostavam da minha liderança. Achava que eu era covarde. Será que eles tinham razão? Será que eu tinha errado de profissão?

Cerqueira colecionou passagens que denotaram sua postura frente ao interesse público, como homem probo que era:

Ficara de comprar uma peça para a viatura do quartel; pedira-me que trouxesse a nota fiscal,  para o meu reembolso. Comprada a peça, não mais me lembro da importância paga, embora lembre com bastante nitidez, que a vendedora perguntara-me se eu queria que constasse na nota o desconto efetuado; perplexo, perguntei-lhe se não seria obrigatório; mais confuso fiquei quando a vendedora dizia-me que ficava ao meu critério; fiz constar o desconto na nota e para surpresa minha, ao contar ao tesoureiro toda essa história, ele assumiu a mesma posição da vendedora, dizendo-me que o que ele queria era a nota fiscal, pouco importando-se com o preço real da encomenda. Essa estória começou a inculcar-me algumas preocupações a respeito das transações comerciais e sobretudo da lisura delas. Verifiquei que se eu quisesse poderia ter levado vantagem na compra da peça, sem que houvesse nenhuma reprovação e qualquer possibilidade de descoberta e da consequente punição […]. Isso soava para mim como um desafio, que eu resolvi enfrentar. Queria mostrar que não me corromperia trabalhando com dinheiro público e que não tinha preço. Jamais me venderia.

Foi um grande defensor da evolução da formação e capacitação policial, além das preocupações com a saúde mental policial. Observava que ao se colocar os policiais nas ruas sem material e apoio para resolver problemas de uma população à qual não se é fornecida dignidade, saúde, educação e etec.,  inevitavelmente esse policial será embrutecido/desumanizado, pois não há saúde mental que resista à tal pressão. Ele observou a ligação entre isso e os altos índices de alcoolismo e suicídio na polícia.

Formado em Filosofia e Psicologia, Pós-Graduado, Cerqueira era defensor da aproximação entre a Academia e a Polícia, para que através de debates fosse possível não apenas tratar dos problemas da Segurança Pública, mas também da visão ruim entre as instituições.

Observava a necessidade de dinamização, pois

Até mesmo os novos, os novíssimos aspirantes com um ano e os velhíssimos com três são alçados pela nuvem paralisante. O descontentamento azeda todas as camadas, mas ao invés de dinamizá-las para a mutação, estabiliza-as no conformismo fatal. É o podia-ser-pior a desarmar as intenções. O sonho que dormita em nossos corações dormita também na consciência de cada um: é construir uma PM que seja respeitada pelo público e que se respeite.

Infelizmente, Cerqueira, que na maior parte de sua trajetória defendeu sua corporação, não foi devidamente – ou propositadamente – entendido nessa atitude, por identificar a realidade e a necessidade de mudanças, sofrendo preconceitos e assédios, por isso. Segundo o próprio, após um período na escola de Oficiais, no qual tentou diminuir disciplinas jurídicas para focar em disciplinas mais adequadas ao serviço técnico policial e ao enfrentar o “trote excessivo e brutalizador”, foi agraciado com uma viagem à França – para conhecer a Gendarmerie francesa – que pode ter sido, também, “uma maneira inteligente de me tirar da EsFO. Estranhei o convite.”. Ele queixava-se entender muito de Direito e de Exército, mas pouco de Polícia.

Cerqueira destacou-se na Escola de Oficiais, sendo primeiro colocado de turma por um motivo pitoresco: o primeiro colocado não precisava portar o fuzil, que era substituído pelo estandarte. Em 1956 concluiria o curso, recebendo das mãos do presidente Juscelino Kubistchek a Espada de Oficial.

No campo da produção intelectual Nazareth enfrentou dificuldades, como óbices impostos à sua pesquisa durante o curso de aperfeiçoamento, versando sobre a questão psicossocial da polícia militar. Sofreria ainda assédio moral ao identificar fraude em diplomas que teriam sido apresentados por filhos de Oficiais para ingresso na corporação, sendo chamado de inimigo dos filhos dos Coronéis

A expulsão da escola deixou-me bastante depressivo, com graves repercussões na minha vida pessoal. Em quinze dias tive três acidentes com meu automóvel, sendo que no último fui parar em um hospital. Nos dias em que estive internado refleti sobre a minha posição e decidi que mudaria de comportamento. Não lutaria para modificar o mundo e os outros. Mas lutaria com todas as forças para que os outros não me modificassem.

Apesar de ser considerado um “criador de casos”, Cerqueira destacava-se por onde passava, também, pela capacidade de planejamento e organização. Em paralelo, continuava sua busca pelo conhecimento policial através da literatura internacional e da Criminologia.  Produziria textos sobre polícia e seus temas, sendo um dos mais destacados o “A PM e as tensões sociais.”, com fortes influências de Miranda Rosa e López-Rey.

Ainda seria preso ao se envolver em um debate público com a ex Deputada Sandra Cavalcante, defendendo a Polícia Militar de críticas da também professora. Teria a punição cancelada alguns anos depois e também receberia a Medalha do Pacificador, do Exército.

Nazareth ainda coordenou a formação do  primeiro corpo de policiais femininas da Polícia Militar do Rio de Janeiro, a quem depois atribuiria competência de trânsito, em sua primeira passagem pelo comando geral da corporação.

Nazareth foi subchefe do Estado Maior, chefe e comendante geral por duas vezes. Somente suas passagens pelo comando geral daria um bom texto, principalmente pela desonestidade como alguns tratam esses períodos até hoje.

Nazareth, segundo um seu biógrafo, “reunia o especialista com a sensibilidade do humano” pensando a existência, não separando o pensar do existir. Para Nazareth

[…] A minha luta sempre, desde o tempo da Escola até o comando-geral, foi uma luta de fazer uma polícia voltada para a coisa pública, voltada para o respeito aos direitos humanos; tanto que não foi muito difícil para mim assimilar a filosofia do governador. Porque, quando o governador disse para mim o que ele queria, aquilo já era coisa que eu já buscava há muito tempo […]

Em seu primeiro comando, herdava um legado de violência dos Esquadrões da Morte que executaram milhares de pessoas e, ao mesmo tempo em que consorciavam com o próprio crime que diziam combater, também defrontava-se com a ascensão do tráfico de drogas no pais.

Além do recrudescimento da crítica à polícia por parte da sociedade, principalmente devido à violência e a corrupção policial. Seu desafio era trazer a ideia de Direitos Humanos como uma realidade à sua corporação, essa era a sua possibilidade de criar a nova polícia que sonhara “uma organização que se entendesse como órgão prestador de serviços, que tivesse compromisso com o bem-estar da comunidade, garantidora de direitos civis.”

Era uma máquina de guerra contra o crime, no pior sentido do termo, à qual cabia a Nazareth implementar a mudança de combater  o inimigo e transformar em uma força de Segurança Pública. Essa visão, da inadequação do modelo militar aplicado à Segurança Pública, ocorreu na Europa ainda no século XIX, como já dito anteriormente.

Nazareth sairia do comando da polícia em 1987, após a posse do novo Governador.

Voltaria em 1991, encontrando não somente o desmonte das estratégias que implementara, mas piores índices criminais. Muitas forças se levantariam contra Nazareth – vide as chacinas da Candelária e Vigário Geral – que não se acovardou, focando em mudanças organizacionais, como o estímulo ao “pensar a polícia”. Por outro lado, incentivou práticas como a criação do PROERD inovador programa de enfrentamento ao problema: drogas x juventude.

Mas Nazareth seria derrotado definitivamente pela Operação Rio e pela eleição de Marcelo Allencar, que ficaria conhecido pela criação da “gratificação faroeste”, responsável pelo significativo aumento de morte de pessoas em confronto com policiais, tanto cidadãos comuns quanto cidadãos policiais. Era comum os jornais darem notícias criticando a letalidade descontrolada da polícia fluminense.

Por fim, escolhemos Nazareth pois ao fim de sua carreira, quando morto em uma controversa execução à luz do dia, ele defendia que o policial ao entender e defender a humanidade do outro, ele estaria a proteger a sua própria dignidade. Nazareth foi executado por um outro policial que aparentemente foi uma vítima do processo desumanizador da violência que afeta a saúde mental: uma das preocupações do Coronel durante toda a sua carreira. Em um momento em que as polícias no Brasil encontram-se encalacradas em decisões profissionais questionáveis e mesmo por partidarismos políticos nefastos, vale evocar a figura de um oficial que era visto também como rígido, enérgico, muitas vezes intransigente e disciplinador, não por ser inflexível, mas por entender e respeitar a administração pública e sua impessoalidade.

Eis Carlos Magno Nazareth Cerqueira!

* É tenente-coronel da Polícia Militar de Sergipe.

Compartilhe:

3 Comments

  1. Chico Varella disse:

    Wellington Mangueira, quando Secretario da SSP – governo de Albano Franco – implantou a POLICIA CIDADÃ.
    Que foi modelo para o Brasil.

  2. MARCELO disse:

    Bom dia Varella. A implementação da polícia comunitária em Sergipe em fins dos anos 90 é um grande passo histórico na segurança pública de sergipe. Isso é incontestável. Fato a ser considerado é que tal processo surgiu mais sistematizado nos anos 60 (apesar de sua origem ser do século xix). Nos anos 70 ocorre na Europa e Estados Unidos e no Brasil seus primeiros passos são dados nos anos 80. Nada disso diminui a importância do que citou.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *