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Cacau, um romance de Jorge Amado em São Cristóvão

Primeira-da direita não identificada, Alta de Souza Calasans Neto, Jorge Amado, Vesta Viana, Zélia Gattai, não identificada e Caribé na Praça do Convento São Francisco, em São Cristóvão

Por Thiago Fragata*

Sergipe faz parte da vida e obra de Jorge Amado. Escritores dedicaram textos a relação telúrica, sentimental e até familiar do escritor baiano. Rui Nascimento, por exemplo, escreveu Jorge Amado: uma cortina que se abre (2007) rememorando a presença do escritor em Estância nos idos de 1935 e 1937/1938. Mas qual a relação do autor de Gabriela Cravo e Canela especificamente com São Cristóvão, ex-capital e afamada quarta cidade mais antiga do Brasil? Responder à pergunta encerra o objetivo desse artigo dividido em duas partes.

Jorge Amado nasceu em Itabuna, Bahia, no dia 10 de agosto de 1912. Filho de Eulália Leal e de João Amado de Faria, natural de Estância que cedo migrara para Bahia. O ramo da família paterna viveu boa parte da sua experiência entre esse município, Itaporanga e Aracaju. Ainda assim, consideramos factível destacar São Cristóvão na vida e literatura amadiana.

O segundo romance de Jorge Amado, intitulado Cacau, escrito aos 20 anos, desvela São Cristóvão em 1933, ano de sua publicação. “Romance proletário”, como o próprio autor definiu, trata da vida acidentada de José Cordeiro, conhecido como Sergipano, filho do proprietário da Fábrica de Tecidos de São Cristóvão. Após a morte do pai, vai trabalhar como operário na fábrica gerenciada pelo tio. Demitido injustamente, migrou então para Bahia, indo trabalhar nas plantações de cacau.

Membro do PCB

Exemplar da literatura engajada do recém-filiado membro do PCB, a obra em tela impressiona pela carga de emotividade e requinte poético. Vale a pena transcrever os parágrafos que versam a quarta cidade mais antiga do Brasil: “A cidade subia pelas ladeiras e parava lá em cima, bem junto ao imenso convento. Olhando do alto, via-se a fábrica, ao pé do monte pelo qual se enroscava a cidade como uma cobra de uma só cabeça inúmeros corpos. Talvez não fosse bela a velha São Cristóvão, ex-capital do Estado, mas era pitoresca, pejada de casas coloniais, um silêncio de fim de mundo, as igrejas e os conventos a abafarem a alegria das quinhentas operárias que fiavam na fábrica de tecidos.

Acho que meu pai montara a fábrica em São Cristóvão devido à decadência da cidade, à sua paz e ao seu sossego, triste cidade parada que devia apaixonar os seus olhos e o seu espírito cansado de paisagens e de aventuras”.

Embora não tenha nominado o genitor ou a fábrica têxtil, desvelamos o quadro da realidade da ex-capital sergipana daquele contexto. Em 1914 foi inaugurada Fábrica Têxtil Sam Christovam S.A., seus proprietários eram Felix Pereira de Azevedo e Othoniel Amado. Sobre este Amado existe uma situação nebulosa relacionada ao nome do romancista talvez um possível parentesco. Cito apenas memória de Junot Silveira, amigo e editor do jornal A Tarde, edição de 11/7/1993: “figura maior do meio social da cidade [São Cristóvão] era o Dr. Pedro Amado, parente de Jorge Amado, proprietário de uma fábrica de tecidos”.

Sobrados retratados

Vejamos como Jorge Amado descreve os sobrados da praça São Francisco, Patrimônio da Humanidade reconhecido pela UNESCO, no dia 1/8/2010. Também, o orfanato da cidade instalado no Lar Imaculada Conceição, antiga Santa Casa de Misericórdia de São Cristóvão:

“Nós morávamos então num enorme e secular sobrado, ex-morada particular dos governadores, uma pesadíssima porta de entrada, as janelas irregulares, todo pintado de vermelho, grandes quartos, nos quais eu e Elza nos perdíamos durante o dia brincando de picula. À noite, por brinquedo algum entraríamos num deles, pois temíamos as almas vagabundas do outro mundo, almas penadas que assobiavam e arrastavam correntes, segundo a veracíssima versão de Virgulina, preta centenária que criara mamãe e nos criava agora.

Ao lado da nossa casa ficava o ex-palácio do governo, quase a cair, transformado em quartel onde alguns soldados habitavam, sujos e preguiçosos. Em frente, o orfanato, seis freiras e oitenta meninas, filhas de operários e pais ignorados. (…) As casas, todas antiquadas e atijoladas, estendiam-se pela praça do convento e equilibravam-se pelas ladeiras”.

Pertinente identificar os sobrados. O primeiro trata-se da atual Casa do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que nenhum documento comprova a função de “residência de ex-governadores”, tampouco Ouvidoria. Pesquisa de 2005 revelou que o sobrado foi construído no século XVIII pelo tenente-coronel Francisco Xavier. Teve ao longo do dezenove, como proprietários, o senhor de engenho Luiz Francisco Freire e o barão Felisberto de Oliveira Freire. Quanto ao outro sobrado, trata-se do atual Museu Histórico de Sergipe. Cumpre destacar que este foi “ex-palácio do governo”, entre 1823 e 1855, perdendo essa função com a Mudança da Capital. No início da década de 1930, o sobrado havia realmente se transformado em quartel da polícia.

Caixão branco

O que era a fábrica no romance que assume o olhar do trabalhador nas relações sociais? Narrado na primeira pessoa pelo protagonista, lê-se: “A fábrica era um caixão branco cheio de ruídos e de vida. Setecentos operários, dos quais quinhentas e tantas mulheres. Os homens emigravam, dizendo que “trabalhar em fiação só pra mulher. Os mais fracos não iam e casavam e tinham legiões de filhas, que substituíam as avós e as mães quando já incapazes abandonavam o serviço”.

A obra explicita a predileção no “mundo da fábrica” pelo trabalho feminino e infantil justificado pelos baixos salários. A cidade fabril fotografada no romance relegava aos homens dois destinos: os cafezais de São Paulo ou as plantações de cacau de Ilhéus, da Bahia. Assim, depois de sua demissão, Sergipano prepara as malas e embarca no navio Murtinho, de Aracaju a Salvador.

A leitura de Cacau revela um jovem escritor “sensibilizado com as fortes desigualdades sociais do país” – ele havia se filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1932. Ademais “inicia o ciclo de livros que retratam a civilização cacaueira”, seguido por Terras do sem-fim (1943), São Jorge dos Ilhéus (1944), Gabriela, cravo e canela (1958) e Tocaia Grande (1984). As páginas de Cacau representam, indiretamente, a prova da presença de Jorge Amado em São Cristóvão. Ele escreveu boa parte da ficção em Aracaju em 1932, mas retrata fielmente a cidade histórica. Sua poeticidade faz contraponto com a crítica social que expõe a injustiça na fábrica de São Cristóvão e na fazenda de cacau da Bahia.

* É especialista em História Cultural pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), sócio do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE) e membro do Grupo de Estudos História Popular do Nordeste (GEHPN/CNPq)

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