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Capoeira e religiosidades ou quando a fé não é problema

Cicero Cunha Bezerra*

A Capoeira é uma das mais expressivas mostras da riqueza cultural brasileira. Música, dança, luta, valores, história, religiosidades, são elementos que compõem o jogo cultural da capoeiragem. Particularmente, como alguém que acompanha os estudos sobre a Capoeira, entendo que esse fenômeno, em todas as suas faces é, essencialmente, de natureza plural. Jamais ousaria afirmar qualquer tese ou estabelecer qualquer limite que pudesse ser utilizado como forma de fundamentação para uma visão única que pretendesse sintetizar o que se nomeia de capoeira. Não quero com isso dizer que não seja possível definir Capoeira, mas para isso, antes de qualquer debate, é preciso conhecer a bibliografia crítica de estudos realizados, pelo menos, nos últimos vinte anos sobre o desenvolvimento dessa arte no Brasil. É importante perceber que o que conhecemos atualmente como Capoeira foi e é uma construção permanente graças aos diversos elementos (Indígenas, africanos e europeus) que se misturaram em um lento processo que poderia ser interpretado, à luz do pensamento de Darcy Ribeiro, como uma mestiçagem criativa.

Penso que a ideia de mestiçagem é muito boa para o que, brevemente, tratarei nesse artigo. Mestiçagem aponta para um fazer-se a si mesmo a partir do outro. Neste sentido, pode parecer absurdo para determinados ouvidos, mas ousaria dizer que a capoeira só é estrangeira na medida em que é genuinamente brasileira. Se referir, portanto, à capoeira como afro-brasileira é, sempre, apontar para um riquíssimo aspecto da nossa cultura, mas não o único. A Capoeira como um devir contínuo, em várias fases históricas, congrega elementos africanos importantes tanto quanto, por exemplo, judaico-cristãos. Basta ouvir algumas músicas, observar as letras, os símbolos e instrumentos para se ter a certeza de que o grande sábio rei Salomão, que, por certo, tem seu “selo” como brasão da Capoeira Regional de mestre Bimba (Selo de Salomão), São Bento, santo protetor cristão contra picadas de cobras, Santa Bárbara, protetora contra tempestades, Nossa Senhora e muitas outras entidades religiosas convivem, harmoniosamente, com Oxum, Oxalá e Iemanjá. Chamo atenção para o advérbio de modo “harmoniosamente” porque quero voltar a ele mais adiante.

Há quem use, como argumento para justificar a filiação direta da Capoeira para com o candomblé, paralelos entre a roda, os instrumentos, as roupas (brancas) e determinados ritmos como as ladainhas, chulas e corridos. Estou de acordo e vejo, de fato, bastante ligações, no entanto, é preciso, uma vez mais, observar que todas essas características também são comuns aos rituais católicos e às rodas de samba urbanas baianas, em suas misturas rítmicas e raciais, nos séculos XVII e XVIII. As ladainhas que ganharam espaço na Europa a partir do século XIII e que, no Brasil, chegou com os jesuítas consolidando-se nas festas e procissões como uma súplica em que a comunidade responde em coro, as chulas que, segundo o historiador José Tinhorão,  tem sua possível origem etimológica na palavra cigano-espanhol chul-ló ou chul-li e que assumiu o sentido depreciativo chulo em português e também chulé (TINHORÃO, 1998, p.61), embora se referisse diretamente às camadas menos favorecidas (chula), encontrou no samba do Recôncavo baiano sua forma de toada entre violeiros, pandeiros e umbigadas (GRAEFF, 2015, p. 55) e logo alcançou patamares sociais distintos, inclusive fora do país, como foi o caso de Portugal. Samba de roda, de chulas e de corridos, foram fontes congregadoras de ritmos que influenciaram, muito provavelmente, a capoeiragem em seus inícios. Quero insistir que não se trata, aqui, de negar os aspectos afros dessas manifestações, mas somente destacar o contexto de diversidade que envolve e que constituiu o complexo diálogo entre culturas em seus ritmos e crenças em solo brasileiro.

Nesse sentido, e voltando para a ideia de harmonia destacado anteriormente, o que a Capoeira tem a nos ensinar sobre religião é, precisamente, mostrar que ela não tem nenhum vínculo específico com nenhuma determinada religião em particular. Estou convicto de que, mesmo em contexto atual, em que a Capoeira se reinventa sob o rótulo de Gospel, capoeirista nenhum olhou ou olha para o seu parceiro de jogo a partir do aspecto religioso que lhe define como partícipe de uma determinada denominação religiosa. Imagens de evangélicos, candomblecistas, cristãos, judeus ortodoxos, monges budistas, jogando Capoeira povoam as redes sociais e sites na internet pelo mundo inteiro. Não me parece que haja nenhuma resistência, nessas práticas, aos tambores, cânticos ou às referências aos santos ou orixás. Inclusive acredito que, mesmo a vertente gospel, que no geral é tomada como a mais “polêmica”, ao definir suas cantigas a partir da mensagem bíblica, se mantém fiel aos toques, chamados, ritmos e golpes tradicionais e, nesse sentido, perpetua o espírito híbrido que vem nutrindo a Capoeira ao longo dos séculos.

É significativo que a frase “Viva meu Deus camará”, cantada em todas as rodas de Capoeira, acolha uma diversidade de crenças sem que isso seja posto em questão. Me parece muito mais rico e bonito contemplar, sob forma de respeito, dois capoeiristas que se inclinam em adoração ao Berimbau e sua ancestralidade e, ao mesmo tempo, traçam o sinal da cruz em pedido de proteção, do que tentar aprofundar diluídos elementos que, em certos casos, são puramente formais e secularizados pela prática esportiva da competição.

A “volta ao mundo”, como quebra e recomeço de um jogo, é associada por muitos ao Xirê do candomblé, como inversão da relação entre o campo espiritual e material, no entanto, não é possível concluir que os capoeiristas, ao darem a “volta ao mundo”, estejam realizando uma prática genuína do candomblé. Isso fica claro no depoimento do Professor Hellio Campos, mestre Xaréu, ex-aluno de mestre Bimba, quando diz:

“Nós da Capoeira Regional, aprendemos a dar a “volta ao mundo”; praticávamos essas ações na roda, girando nela quando cansados,ou simplesmente como estratégia para um novo jogo, uma nova situação. Na prática, utilizávamos principalmente da surpresa, desferindo um golpe inesperado em instantes diversos, exigindo do companheiro de jogo uma reação imediata adequada àquele momento. A grande lição tirada dessa atividade é entender que o “mundo dá muitas voltas” (CAMPOS, 2009, p.132).

Como se pode constatar, o caráter pragmático do movimento suplanta qualquer possível vínculo espiritual com algum ritual que se realiza no momento da “Volta ao mundo”. Alguém pode objetar que isso se trata de uma opinião de um indivíduo que não se aplica à capoeira de maneira geral. Estou de acordo, mas como bem expressou Marcelino dos Santos, Mestre Mau, em nota que abre o livro Capoeira e Mandingas. Cobrinha Verde (1991): “Se os fatos narrados neste livro não aconteceram conforme Cobrinha Verde conta, azar dos fatos”. Ou seja, quem diz os fatos?

A Capoeira tem muito a ensinar aos que se interessam por uma educação pautada na diversidade de valores, não como uma espécie de tolerância ou afirmação de identidades radicais e polarizadas em suas individualidades, mas jogo, ginga, movimento que exige troca e respeito mútuo. Na roda, terço, patuá ou qualquer outro elemento religioso se misturam à malícia, à astúcia e à eficácia dos golpes e negaceios.

Finalmente, penso que o que contribuiu efetivamente para a sua saída da marginalidade ao respeito e admiração pública foi, sem sombra de dúvida, sua capacidade de se reinventar como um espaço inclusivo, divertido e dinâmico. Embora permaneçam alguns resquícios questionáveis em relação, por exemplo, à desigualdade entre mestres e mestras, algo que paulatinamente vem sendo desconstruído, no que se refere aos aspectos religiosos temos uma experiência coletiva bastante interessante e que merece atenção e cultivo.

O certo é que a Capoeira é grande demais para ser de uma religião. Seus praticantes sabem, felizmente, que a roda é regida pelos golpes. A esquiva mantém a Capoeira presente em diversas manifestações sociais sem reduzir-se a nenhuma. Que esse espírito de liberdade de crença permaneça vigorando na Capoeira por muito tempo. Lê viva meu…

*Professor do Departamento de Filosofia e dos Programas de Filosofia e Ciências da Religião da Universidade Federal de Sergipe.

Referências

Campos, H. Capoeira Regional a escola de Mestre Bimba, Salvador: EDUFBA, 2009.

Dos Santos, M. Capoeira e mandingas, Cobrinha Verde, Salvador: A rasteira, 1991.

Graeff, N. Os ritmos da roda, Transformação e tradição no samba de roda, Salvador:   EDUFBA, 2015.

Tinhorão, J. R. História social da música popular brasileira, São Paulo:Ed.34, 1998.

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2 Comments

  1. Gustavo Costa disse:

    Muito bom! Só gostaria de destacar o caráter de resistência colonial que permeia a capoeira. Essa é a essência dessa prática maravilhosa que não pode se perder. Percebo que a desconfiança com a “capoeira gospel” vem um pouco daí. Sabemos que a religião tem um poder muito grande de se apropriar e promover apagamentos de expressões culturais como forma de dominação (a exemplo do que o catolicismo fez no passado). Contanto que a capoeira não perca essa essência de luta anticolonial, a filosofia africana nos ensina que as mudanças são necessárias para preservar as tradições. Tudo é movimento…

  2. Wellington de Jesus Bomfim disse:

    Aquilo que veio da Europa, como o conhecimento filosófico, foi em boa parte, um furto do conhecimento produzido na África, em Kemet e Egito… Dizer que o que foi trazido pelos europeus são coisas dos europeus, é desconhecer ou omitir de onde foram originados grande parte do conhecimento ocidental. A capoeira é sim Africana, mas que em virtude das interações que fora acometida aqui no Brasil, alguns traços foram emprestado, absorvidos, perdidos e ganhos… Mas a ancestralidade africana não pode ser colocada no mesmo patamar dessas influências, sejam indígenas ou europeias.

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