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Presença judaica em Sergipe

Por Marcos Cardoso*

Sergipe é um dos poucos Estados brasileiros onde não há uma sinagoga. Este é o sinal mais evidente de como é diminuta a colônia judaica no Estado. O templo israelita é um sinal definitivo da presença dos filhos de Israel. Embora muitos judeus estrangeiros tenham imigrado para cá no Século 20, poucos ficaram. Três, pelo menos, fincaram raízes, constituíram família e tornaram perenes seus sobrenomes: Chapermann, Schuster e Milstein. Foram homens que chegaram pobres, trabalharam de sol a sol e conseguiram erguer patrimônios respeitados, principalmente no ramo do comércio. Se não chegaram a ter influência direta na formação política do Estado, conseguiram contribuir substancialmente na sua constituição econômica.

Povo nômade, pois não tinham pátria, os judeus intensificaram o êxodo após a 1ª Guerra Mundial (1914-1918) e a Revolução Russa (1917). Sofrido o holocausto nazista durante a 2ª Guerra, tiveram onde se fixar depois da fundação do Estado de Israel, em 1948, quando passaram a emigrar para lá. Em 1914, chegaram os primeiros judeus contemporâneos a Sergipe: José Chapermann Natal e Salomão Kipermann (conhecido entre seus pares como “Zé Olhinho”). José veio e, em 1918, mandou buscar a mulher, Clara, e os dois filhos, Abrahão e Isaac Chapermann. Abrahão viria a ser o dono da Mobiliária Chic, que marcou época em Aracaju. Eles enfrentaram dificuldades na saída da Ucrânia, então anexada à União Soviética. Na década de 20, fugiram muitos judeus para o continente americano, destacando-se como países receptores na América do Sul o Brasil e, principalmente, a Argentina. A maioria era asquenaze, judeus da região compreendida entre a Alemanha e a Rússia, que falavam a língua iídiche.

No dia 26 de novembro de 1926, chegaram ao Brasil Isaac Schuster e mais 11 colegas. Ele chegou com 16 anos, oriundo da Romênia, no período de efervescência em que vivia a Europa entre as duas guerras. O pai de Isaac Schuster havia sido fuzilado pelos alemães na 1ª Guerra. A maioria dos 11 companheiros ficou no Rio de Janeiro, onde desembarcaram. Eles vieram dentro de sacos de carvão, no porão de um navio. “O dinheiro que meu pai possuía quando desembarcou no Brasil dava apenas para comprar um ovo cozido e uma xícara de café. Além disso, ele não falava nada em português”, recorda o empresário Lion Schuster, filho de Isaac, o sergipano mais preocupado em resgatar a memória do povo judeu no Estado. Ele planejava escrever um livro a respeito da saga dessas famílias.

Isaac Gringo

Pouco depois, Isaac Schuster também veio para Sergipe, junto com José Zuckmann, Brabeck, Elias Reutman e Isaac Schinitmann. Começou vendendo confecções em Lagarto para Zé Olhinho, que já estava instalado por aqui. Depois, por conta própria, passou a vender santos, sombrinhas e tecidos. Ele saía pela rua com os produtos dentro de um baú. Logo passou a ser conhecido como Isaac “Gringo”. Vendia os produtos a prestação, recebendo por semana.

Em Lagarto, conheceu a futura esposa, Maria Rodrigues do Nascimento, que depois incorporou o sobrenome Schuster. Casaram-se em 1929. Os filhos mais velhos dos 11 que tiveram, Abraão e Elza, são lagartenses. Naquela cidade do interior, Isaac teria vivenciado um episódio inusitado, lembrado por Lion: “Foi o único judeu russo que se escondeu de Lampião”. Um dos muitos filhos foi a desembargadora Geni Silveira Schuster. Na 2ª Guerra, durante o governo de Getúlio Vargas, Isaac dava discursos políticos no Ponto Chic, na esquina das ruas João Pessoa e Laranjeiras, contra os integralistas. Foi preso junto com Brabeck. Saíram da penitenciária após exigirem tratamento de presos políticos, mas tinham medo de que Getúlio Vargas os mandassem de volta, entregando-os aos alemães, como havia feito com Olga Benário, mulher do comunista Luiz Carlos Prestes. O regime usava seus livros russos como prova. Dos 11 que vieram, um retornou com saudade e acabou sendo fuzilado.

Paulo e Joanita Milstein Silva

Ele finalmente pôde comprar a primeira loja em 1953, na rua Laranjeiras. Era uma das filiais das Casas Isaac Schuster. No início, vendia apenas móveis de vime. No outro lado da rua, em frente à sua loja, havia a fábrica de colchões de capim de um outro judeu, Manoel Milstein, pai de Joanita Milstein Silva, mulher de Paulo Silva, os fundadores do Café Sul-Americano. Lion começou a trabalhar com o pai ainda criança, quando saíam pelas ruas vendendo e recebendo pagamentos. “O dia certo do pagamento das prestações era o domingo. Por isso eu raramente podia ir à praia, que era a coisa que eu mais gostava”, recorda, com uma ponta de frustração, mas orgulhoso em demonstrar o quanto o pai era trabalhador. Ele recebia de comerciantes do Mercado Municipal e dos bairros Industrial, Santo Antônio, 18 do Forte e Siqueira Campos. “Na época que eu saía junto com meu pai, nós improvisávamos o almoço na rua São João, onde comíamos pão acompanhado de sardinha com tomate e cebola, além de jenipapada”.

Isaac Schuster morreu sem realizar o sonho de rever os familiares que havia deixado na Romênia. “Muita gente humilde chorou com a morte de Isaac Gringo”, recorda Lion, o quarto dos irmãos, que assumiu os negócios quando o pai morreu. “Meu pai nos ensinou a viver dignamente e a ganhar dinheiro”. Ele estava se preparando para viajar até a Romênia, para ver a mãe que estava doente. Mas só viajaria se conseguisse a cidadania brasileira, para garantir que poderia voltar ao país onde havia constituído a sua família. Antes que a burocracia o liberasse, contudo, recebeu uma carta, com quatro meses de atraso comunicando-o que a mãe havia morrido. Isaac Schuster faleceu poucos anos depois, em 1964, aos 57 anos, vítima de trombose cerebral.

Perseguidos pelos cristãos

Após a destruição de Jerusalém, no ano 70 da era cristã, a história dos judeus é a de um povo disperso, que conservou sua religião. Instalados a princípio em Jabreh, depois na Babilônia, ali fizeram florescer grandes escolas, a Torá foi atentamente estudada e deu-se prosseguimento à elaboração do Talmude (doutrina e jurisprudência da lei mosaica). Por outro lado, no Império Romano, e mais tarde no Império Bizantino, onde predominava o cristianismo, a sorte não lhes foi tão propícia. Na Espanha muçulmana, do século VII ao século XIII, o gênio judaico pôde florescer nas artes, na literatura e na filosofia. Foi por esta época que se desenvolveu a Cabala (tratado filosófico-religioso hebraico, que pretende resumir uma religião secreta que se supõe haver coexistido com religião popular dos hebreus).

Após a Reconquista cristã da península Ibérica, verificou-se terrível perseguição aos judeus, cujo instrumento maior foi a Inquisição. Esta obrigou os judeus a se converterem, ao menos na aparência (os “marranos”), ou a fugir da península: estes “espanhóis”, ou sefarditas, se instalaram nos países da bacia do Mediterrâneo, nos Países Baixos ou na Inglaterra. No restante do Ocidente cristão, a perseguição aos judeus foi sistemática, gerando o que mais tarde se chamaria de antissemitismo. Periodicamente, os judeus sofreram expulsões, discriminações e massacres: a caricatura preconceituosa do judeu deicida e usurário fixou-se por muitos séculos. Somente na Itália, havia certa tolerância.

Nos países não-cristãos, especialmente o Império Otomano, nos Países Baixos protestantes, sobretudo nos séculos XVI e XVII, e posteriormente na França, graças à proteção real, as comunidades judaicas foram toleradas. Na Polônia, a população judaica a princípio cresceu com a chegada de perseguidos da Alemanha e, a partir do século XVIII, com os judeus que fugiam dos “pogroms” russos. Mas no Século das Luzes, enraizou-se a ideia de uma emancipação dos judeus, cujos partidários triunfaram na Revolução Francesa. Napoleão I estabeleceu na França uma legislação consistorial, que ainda está em vigor. Por toda a Europa ocidental e nos Estados Unidos – onde, em 1914, já existiam 3,5 milhões de judeus vindos da Europa Central e Oriental – os judeus emancipados se europeizaram, integrando-se ao desenvolvimento intelectual, econômico e social de suas nações.

Na Europa oriental, os judeus permaneciam como suspeitos. Essa emancipação rápida provocou, após 1880, a ressurreição do antissemitismo, que intelectuais reacionários erigiram como doutrina. O caso Dreyfus, na França, atiçou um desprezo e até um ódio racial que se encontravam por toda parte, mas sobretudo na Alemanha, entre as duas guerras. O sionismo, originado com Theodor Herzl (“O Estado Judeu”, 1896), alimentou as esperanças dos judeus europeus perseguidos, mas foi também um elemento que fomentou o antissemitismo. Misturado com teorias racistas falsamente científicas, o preconceito atingiu seu paroxismo com o nazismo, que levou Adolf Hitler e seus correligionários a preconizarem a “solução final”, ou seja, o massacre do povo judeu: ao fim do conflito, 6 milhões de judeus haviam sido assassinados nos campos de extermínio nazistas. Depois da guerra, as comunidades israelitas se reconstituíram. Enquanto a ideia sionista se concretizava com a criação do Estado de Israel, o antissemitismo, às vezes sob a forma de antissionismo, reapareceria em vários países.

Três sobrenomes mestiçados

Das três principais famílias que se fixaram em Sergipe (Schuster, Chapermann e Milstein), Schuster é a mais numerosa, hoje com cerca de 80 remanescentes. Mas os seis filhos de Joanita Milstein são os únicos legítimos judeus vivos. Além de ser filha de Manoel Milstein e Sônia Koifman, Joanita era considerada de “raça pura” porque a mãe era judia. O mesmo acontece com seus filhos. “O valor da raça judaica está em ser filho de mulher judia”, explica Luciano Milstein Silva, quarto filho de Joanita, e um apaixonado por Israel, onde morou. “Considero tanto minha pátria quanto o Brasil”, diz, orgulhoso.

Manoel e Sônia Koifman Milstein, ucranianos de Kamnipadovskaia (antiga Bessarábia) que coincidentemente encontraram-se no Brasil, após passarem pela Argentina, casaram-se em Natal (RN) e depois se mudaram para Aracaju. Tiveram três filhos, sendo que Anita e Samuel mudaram-se, junto com a mãe, para Israel logo após a fundação do Estado judeu, onde constituíram família. Anita casou-se com Fritz Guggenheinn, judeu de uma abastada família alemã que fugiu do holocausto nazista com 10 anos, deixando para trás os pais, que acabaram sendo assassinados. Fritz viveu na Argentina e em Goiás, no Brasil, mas conheceu Anita em Israel. Sônia Koifman morreu em 1984.

Joanita e Paulo Silva casaram-se, na década de 50, contra a vontade dos pais dela, que rejeitavam a união com um não-judeu. Eles foram os pais de Olga, Paulo Filho, Manoel, Luciano, Marcos e Ana Paula. “Meu pai foi um lutador, que construiu um grande patrimônio. Mas sem minha mãe, ele não chegaria aonde chegou. Dona Joanita era uma leoa para trabalhar”, reconhece Luciano. Ele próprio viveu na pele a pressão da importância que o povo judeu dá à questão da perpetuação da raça: “Algumas vezes, prepararam mulheres judias com quem eu deveria me casar”, admite Luciano, que acabou se casando com uma sergipana. “É a maior miscigenação de raças do mundo e isso aumenta a preocupação com a perpetuação”, observa, lembrando que o êxodo espalhou judeus pelos quatro cantos do planeta. Há judeus orientais e ocidentais, assim como há judeus árabes, argentinos, russos e americanos. “Há judeus oriundos da Somália, negros, que foram aceitos em Israel”, observa.

Primeiros judeus chegaram no século XVII

A história registra a presença de judeus em Sergipe desde o século XVII, quando aqui desembarcavam como cristãos-novos. Segundo conta a historiadora Maria Thétis Nunes, no livro “Sergipe Colonial I”, a recém-criada “Capitania de Sergipe Del Rei, em pleno desenvolvimento, atraía, na dispersão da população rarefeita que ocupava seu território, a entrada de cristãos-novos, que aí poderiam passar despercebidos”. Mas, “mesmo rarefeita, a sociedade sergipana da segunda década do século XVII seria atingida pelo olho da Inquisição, alcançando, em primeiro plano, os cristãos-novos nela estabelecidos”. A perseguição aos judeus, representantes da burguesia comercial em ascensão e que aqui chegaram até ser fidalgos e senhores de engenho, prosseguiu por cerca de dois séculos.

Os cristãos-novos, judeus que se converteram à fé cristã, ou que descendiam de pais ou avós convertidos, quase sempre foram forçados à conversão, por fanatismo religioso e oportunismo cristão: ao mesmo tempo em que, na península ibérica, notadamente em Portugal, se lhes impunha a conversão, impedia-se ou dificultava-se sua saída do país e criavam-se pretextos para espoliações. No Brasil, muitos cristãos-novos foram perseguidos pela Inquisição sob a acusação de praticar sua fé às escondidas. Não raramente tinham seus bens confiscados e, muitas vezes, eram enviados a Portugal para serem julgados pelo Tribunal do Santo Ofício.

(Texto publicado originalmente no Jornal da Cidade e na Infonet em 11 de setembro de 2011)

Na foto, no Cine Guarani, esquina da Rua Estância e Avenida Pedro Calazans, Paulo e Joanita Milstein Silva, ela considerada judia autêntica.

* É jornalista e escritor. Foi diretor de Redação do Jornal da Cidade, secretário de Comunicação da Prefeitura de Aracaju, diretor de Comunicação do Tribunal de Contas de Sergipe e é servidor de carreira da UFS, onde dirige a Rádio UFS e coordena a TV UFS. É autor dos livros “Sempre aos Domingos – Antologia de textos jornalísticos” e do romance “O Anofelino Solerte”.

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2 Comments

  1. Sonia Pedrosa disse:

    Ótimo texto, Marcos, como sempre.
    Tenho muito respeito e admiração pelo povo judeu.
    O seu registro dos poucos judeus em Sergipe está impecável.
    Parabéns.

  2. Thiago Fragatw disse:

    Excelente texto, pesquisa bem articulada. Parabéns!

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