Traços culturais trazidos pelos mouros à Península Ibérica chegaram ao interior do Nordeste com os colonizadores espanhóis no século XVI e permanecem vivos na indumentária e práticas do vaqueiro
A figura do vaqueiro nordestino é símbolo de resistência, identidade e tradição no semiárido brasileiro. Mas por trás do gibão de couro, do chapéu abaulado e das botas reforçadas, há um enredo histórico pouco conhecido: a influência árabe que moldou aspectos da cultura sertaneja, especialmente nas vestimentas e práticas de montaria.
A princípio, essa herança remonta ao período da dominação moura na Península Ibérica, que durou mais de sete séculos. Quando espanhóis e portugueses colonizaram o Brasil, muitos traços culturais e linguísticos de origem árabe foram incorporados e trazidos ao sertão nordestino, onde encontraram terreno fértil para se fixar e adaptar ao clima árido e às atividades de criação de gado.
A atividade de vaqueiro ganhou força no século XVI com a expansão da pecuária no sertão nordestino. Para enfrentar a vegetação espinhosa da caatinga, o trabalhador passou a utilizar uma vestimenta protetora feita de couro: gibão, perneiras, chapéu, luvas e botas, todos cuidadosamente confeccionados.
Curiosamente, esse estilo de vestimenta guarda semelhanças com trajes usados por povos berberes e árabes do norte da África, adaptados às regiões desérticas. O uso do couro como material predominante, por exemplo, é um elemento comum às culturas nômades árabes, que também lidam com clima quente, seco e vegetação hostil.
Além disso, palavras como alforge, almofada, almocreve, açude, alazão e gibão possuem raízes árabes e estão diretamente ligadas ao cotidiano do vaqueiro.
A presença árabe também é percebida em aspectos da culinária (como o uso de carne seca e especiarias), na arquitetura de antigas fazendas de gado e até em instrumentos musicais adaptados ao forró e aboios. Mas é na indumentária do vaqueiro que essa influência mais se destaca e resiste ao tempo.
Além disso, estudiosos apontam que os trajes utilizados no sertão nordestino foram inspirados no modelo dos vaqueiros andaluzes, herdeiros diretos das tradições muçulmanas da região da Andaluzia, na Espanha. Dessa maneira, de lá, esses costumes migraram para o Brasil, especialmente durante a ocupação da Capitania do Rio Grande pelos ibéricos, no século XVII.
A presença árabe no interior do Nordeste é mais profunda do que muitos imaginam. Afinal, a indumentária do vaqueiro nordestino, símbolo da bravura sertaneja, carrega consigo traços de uma cultura milenar que atravessou o tempo e os continentes.
Portanto, ao preservar essas tradições, o vaqueiro não apenas protege seu corpo, mas também mantém viva uma herança histórica que liga o sertão nordestino ao deserto do Saara por caminhos invisíveis de resistência, sabedoria e adaptação.
Arabismos presentes na cultura do vaqueiro nordestino
Termo / Objeto | Origem Árabe | Significado e Uso |
Gibão | “jubba” | Casaco de couro usado para proteger o corpo dos espinhos da caatinga |
Alforge | “al-furj” | Bolsa ou compartimento para carregar objetos na sela do cavalo |
Almofada | “al-mikhaddah” | Utilizada em assentos ou arreios |
Almocreve | “al-muqariab” | Comerciante ambulante ou tropeiro |
Açude | “as-sudd” | Represa ou barragem para armazenar água |
Alazão | “al-azan” | Cavalo de pelagem castanho-avermelhada |
Capanga | Do árabe via espanhol | Bolsa de couro usada na cintura ou ombro |
Chapéu abaulado | Influência moura | Semelhante ao estilo de proteção usado por povos do deserto |
Fonte e fotos: Portal NE9