UFS aprova criação do Campus de Estância
30 de maio de 2025
Conta de luz terá bandeira vermelha em junho
31 de maio de 2025
Exibir tudo

Vestida de noiva

Por Lelê Teles *

meu irmão mais velho começou cedo na vida do crime.

aos nove anos de idade, sorrateiramente, ele entrou no quarto de um vizinho adolescente e surrupiou todas as economias do pequeno capitalista.

misso, esse era o nome da vítima, guardava as moedinhas que ganhava dos pais e dos tios dentro de um porquinho de barro que ele escondia debaixo da cama.

às vezes, ele trazia o cofrinho pra rua, fazendo inveja na meninada.

a gente se revezava, agitados, pra sentir o peso do porquinho, que sempre aumentava, e sacudir o bichinho pra ouvir o tilintar das moedinhas.

movido pela cobiça, meu irmão quebrou o animalzinho a marteladas, pegou toda a fortuna do pobre-diabo e foi até a mercearia do seo kelé.

comprou bolo, bolachas recheadas, chicletes, carrinhos, suspiros, marias-moles e um monte de guloseimas e distribuiu pra molecada.

risos, folguedos, corre-corre; algazarra.

nasceu ali, no pequeno corpo do meu irmão, o grande espírito de um robin hood.

por décadas, esse encosto serviu como justificativa para a sua cleptomania patológica.

mamãe acreditava que o filho nascera com uma maldição, já que veio ao mundo no dia primeiro de abril, o que faria dele, eternamente, um mentiroso contumaz.

o certo é que à medida que ele ia crescendo, crescia com ele uma incrível habilidade criminosa e uma irrefreável vontade de delinquir.

depois do porquinho, vieram outros pequenos crimes: furtos, falcatruas, trapaças, trambiques, desfalques, descuidos.

na pré-adolescência, migrou para o roubo de varais, furtos em supermercados, invasão de domicílios.

adolescendo, passou para o rufianismo e a agiotagem.

na fase adulta: roubos de casas, de lojas, de carros, assaltos à mão armada e tráfico de drogas.

confesso que o acompanhei em muitas dessas aventuras, e me diverti bastante criminando e delinquindo.

mas de tudo o que fizemos juntos ainda guardo viva a memória do dia em que roubamos uma mulher.

não que tenhamos roubado algo dela, roubamos ela mesma.

chamava-se divina e era divinamente linda.

lábios sempre úmidos, olhos miúdos e observadores, mãos suaves e ardilosas, um andar sinuoso e ensinuante e sorria sempre com entusiasmada galhardia.

desde cedo, queixava-se à minha mãe que queria se casar logo e se livrar de uma vez por todas da mãe opressora.

assim que completou dezoito anos, se perfumou toda e foi passear no parque.

lá encontrou um sargento, quinze anos mais velho que ela.

entre um sorvete e outro, começaram a namorar.

dois meses depois estavam noivos, já com casamento marcado.

o sujeito era feio como o diabo, vestia uma máscara de homem bruto e bravo, e sempre ia à casa da minha tia fardado, para impressioná-la.

divina nunca havia se apaixonado de verdade, tivera romances imaginários com galãs de novela, professores do ginásio e até com um padre jovem da paróquia do bairro.

mas nunca se derretera por alguém de carne e osso.

até que um dia, em casa, seus olhos límbicos se encontraram com o de márcio andré, um adolescente bonitão que estudava com meu irmão, eles faziam a oitava série.

na mesma tarde márcio e divina se atracaram, boca com boca, umbigo com umbigo, virilhas com virilhas, devorando-se como dois canibais famintos.

os encontros foram se sucedendo, mamãe desconfiou de súbita alegria da jovem e de suas constantes visitas.

até que divina, espremida, confessou a traição, e disse mais, iria à lua de mel já desvirginada.

houve choro e ranger de dentes.

mamãe chamou márcio para uma conversa, disse que a moça se casaria daqui a duas semanas e fê-lo desistir da felonia.

márcio e divina passaram essas semanas transando e chorando, num delicioso ritual de despedida.

mamãe impediu os filhos de ir ao casamento.

nessa noite, márcio virou um molambo humano, chorava como um adulto.

meu irmão teve pena dele e dela.

e usou suas habilidades mais uma vez para fazer o bem.

roubou um carro, botou a molecada dentro e fomos à igreja.

o combinado seria que eu, um experiente coroinha, entrasse na igreja, acompanhasse a cerimônia e avisasse o momento em que o padre diria: “se alguém tem algum motivo para se opor a este casamento, que fale agora ou cale-se para sempre”.

aí márcio entraria e, a plenos pulmões, confessaria-se talarico, denunciaria a noiva como adúltera e anularia o casório.

todos estávamos de acordo que o plano era perfeito.

quando entrei na igreja, minha família tava saindo, o casamento havia sido concluído, os noivos receberam a chuva de arroz e se mandaram para um hotel, uma vez que iriam viajar pra lua de mel ainda naquela noite.

descobrimos o hotel e fomos pra lá, márcio insistiu que queria vê-la pela última vez.

satanás deu uma mãozinha.

quando estacionamos, uma cortina se abriu na janela à nossa frente, três andares acima de nossas cabeças.

era a diva, e ela estava divina.

márcio fez mímica pedindo pra que ela descesse, ela mimicou de volta perguntando se ele tava louco, ele disse que sim e perguntou onde estava o noivo, ainda na linguagem gestual divina disse que o papa-anjo tava no banho.

márcio se ajoelhou com um ramo de folhas na mão, como se a pedisse em casamento, ela se derreteu toda e quase escorreu pela janela.

fechou a cortina novamente e sumiu.

daqui a pouco ela apareceu na porta do hotel, de grinalda na cabeça, segurando a barra do vestido de noiva para não arrastar no chão.

entrou no carro e saímos em disparada.

muita alegria, muita algazarra.

ela ficou uma semana escondida no quarto de márcio andré, a polícia procurava o paradeiro dela.

o sumiço saiu no jornal.

meu pai ameaçou surra de cinto, de chicote, de galho de amora…

ninguém abriu o bico.

mamãe não se conteve, foi à casa de márcio e conversou com a mãe dele.

a velha tinha uma chave reserva, abriram a porta do quarto e lá estava divina, vestida com as roupas do namoradinho.

o marido a aceitou de volta, mudaram-se para outro estado e foram infelizes para sempre.

palavra da salvação.

* Formado pela Universidade de Brasília, Lelê Teles é jornalista, roteirista e publicitário.

 

 

Compartilhe:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *