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O medo da morte

Por Antonio Samarone *

Conheci Gutemberg Resende na adolescência. O filho de Zé Boleia era precoce. Um inteligência que beirava a anomalia. Deixou a escola e mergulhou nos livros. Ele foi o primeiro, entre os meus amigos, a descobrir a Internet.

Depois de longa ausência, soube que o meu amigo de infância está aguardando a morte em um hospital de São de Paulo, com um câncer na garganta.

Descobri o seu e-mail e estabeleci contato. Gutemberg há muito habita o ciberespaço, onde eu fui encontrá-lo.

Antes de revelar o destino do meu amigo, peço paciência para relatar um pouco do e-mail que ele me respondeu.

Gutemberg descobriu, lendo Kierkegaard, a dualidade paradoxal da existência humana: somos metade animal, verme, alimento de vermes e metade simbólica. Somos um corpo material finito, pó, condenado a morte e, ao mesmo tempo, somos uma consciência infinita, criadora, uma mente que voa alto em busca da imortalidade.

O corpo é a ruína dos esforços do espírito.

A vulgaridade materialista acredita que a mente é uma função físico-química do cérebro e que a consciência perece com o corpo. Gutemberg reage furioso contra essa hipótese.

O cristianismo prega que com a morte do corpo, a alma (consciência) se liberta para uma vida eterna no Paraíso, para os bens comportados. Os espíritas kardecista, enxergam novas chances para o espírito (consciência), que irão reencarnar. As religiões orientais apontam para o nirvana. As alternativas religiosas são muito simplificadoras, para a complexidade intelectual de Gutemberg.

Buscou uma saída nos estoicismo. Leu as cartas de Sêneca a Lucilio, onde o filosofo aconselha ao amigo uma aceitação serena da morte. Não agradou a Gutemberg, ele busca a imortalidade.

Achou a versão do sábio argentino Jorge Luís Borges, em seu conto “O Imortal” razoável. A consciência se imortaliza pela literatura, eternizando o espírito humano. Entretanto, a coletivização da imortalidade também não atende a indignação de Gutemberg.

Quem chegou até aqui, ficará sabendo o caminho que ele encontrou para superar essa condição humana.

“Meu amigo Samarone, somos a última geração a morrer. A imortalidade encontrou uma saída técnica. Que o diabo carregue esse corpo, ele não me pertence.”

“Aliás, continuou Gutemberg, com a posse científicas do genoma e os avanços da engenharia genética, poderemos clonar quantos corpos se fizerem necessários. O homem biológico se tornará uma curiosidade arqueológica.”

Esse avanço pode ajudar, más não resolve!

“O problema é outro: como imortalizar a consciência, o Eu, a mente, a alma? Com essa memória preservada em arquivos, em toda a sua complexidade, poderemos implantá-la em um outro corpo clonado ou mesmo em uma máquina robótica. Talvez a segunda alternativa seja mais segura.”

“Eu conseguir captar a minha consciência, ela está em um arquivo, não muito grande. Se a tecnologia 5G já estivesse funcionando no Brasil, lhe mandaria pela Internet. A dificuldade atual, que logo será superada, é reimplantá-la em um corpo clonado ou em uma máquina. É o fim das demências e da morte.”

A saída para a morte será técnica, e não demora.

Eu ainda perguntei pela doença, o câncer na garganta. Ele me respondeu com desdém: “já me libertei do corpo há muito tempo. A carcaça ficara para os vermes, ou será cremada. Isso não me interessa.

Vou mandar o arquivo com a minha consciência para você. Aliás, esse arquivo já está depositado no Olimpo, nas nuvens cibernéticas. Já vivo no ciberespaço há muito tempo. Lá continuarei”.

Adeus ao corpo!

* É médico sanitarista

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1 Comments

  1. Parabéns pela publicação
    Que espírito evoluído.
    O grande cantor João Nogueira ( pai de Diogo nogueira), canta uma música se eu não estiver enganado chamada ” súplica”, que fala um pouco do tema.

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