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O artista é um homem comum

O artista é um homem comum. Sua obra pode ser perene e um dia valer milhões, mas sua vida é trivial, efêmera e quando muito vale pouco. A arte pode alcançar um preço inumerável, o artista é quase sempre um artigo barato. Senão um pária, um ser doce, um humano comum, com seus anjos e demônios. Ou uma pústula social.

Vincent Van Gogh era um holandês classe média alta, religioso, atormentado por transtornos psiquiátricos que o levaram à automutilação e ao suicídio. O que havia de extraordinário num camarada como esse? O holandês possuía uma habilidade com a paleta de cores que o fizera revolucionar até a inovadora escola impressionista.

Dizem que o alcoólatra Henri de Toulouse-Lautrec, outro absolvido pela história, o apresentou ao absinto, a bebida dos loucos, a “fada verde” que teria contribuído para as alucinações e surtos psicóticos. Mas o “Retrato de Dr. Gachet”, uma das suas telas mais famosas, não custaria menos de 200 milhões de dólares se hoje voltasse ao mercado.

Outro alcoólatra genial que cultuava o absinto foi Ernest Hemingway. O consumo da bebida é exaltado em “Por Quem os Sinos Dobram”, clássico da literatura universal, ao lado de “O Velho e o Mar” e “Adeus às Armas”. Ele destruiu os demônios da depressão, da insegurança e do alcoolismo ao estourar os miolos com um tiro de espingarda.

Vivendo num limbo de uma suposta relação entre a depressão e o ofício da escrita, ou vice-versa, outros autores de obras literárias importantes e também atormentados se mataram: Hart Crane, Virginia Woolf, Jack London, Sylvia Plath, Vladimir Maiakovski, Stefan Zweig, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Mário de Sá Carneiro, Florbela Espanca.

Kurt Cobain, líder do Nirvana, também se matou com um tiro de espingarda. Outros da maldição dos 27, Jimmy Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison e Amy Winehouse, não necessariamente cometeram suicídio, mas igualmente atormentados exageraram na dose. Não sem antes deixarem registros de acordes sonantes que reverberarão por quase todo um sempre.

Na categoria de portadores de instabilidade psíquica muitas vezes dotada de traços patológicos talvez se encaixe Chuck Berry, deus da guitarra e um dos pioneiros do rock and roll. Foi processado por 60 mulheres que o acusaram de filmá-las no banheiro de seu restaurante no Missouri.

Quanto ao inseguro e onipresente Michael Jackson, teria sido suicídio? O ídolo acusado de abuso sexual de menores é o maior e mais relevante artista da história da música popular. Segundo o Guinness World Records, ele continua na lista dos 100 mais vendidos desde 1969, sem interrupção. Dois de seus álbuns de estúdio estão entre os dez mais vendidos da história. Considerado o “maior ícone negro de todos os tempos”, ainda é lembrado por ser um dos artistas que mais se dedicaram a ações contra fome no continente africano, doando milhões de dólares para a caridade.

Se Michael buscou reparar o rótulo de artista louco, o mesmo não se pode dizer do nosso maluco beleza Raul Seixas. Autor dos versos inesquecíveis da lindamente banal “Ouro de Tolo” (Eu que não me sento/No trono de um apartamento/Com a boca escancarada cheia de dentes/Esperando a morte chegar), o pai do rock brasileiro não teve uma vida fácil. O diabético descuidado também morreu vitimado pelo alcoolismo, aos 44 anos.

Elis Regina, a nossa pimentinha mais doce, teria morrido de uma dose letal de cocaína e álcool. Será? Nelson Mota assegura que se mistura de álcool e cocaína matasse 80% da MPB teria morrido precocemente. Mas a mulher que é provavelmente a maior cantora do Brasil em todos os tempos era insegura: “Morro de medo. Faço todos os espetáculos me borrando de medo. Todos os dias”. E impulsiva: “Sempre vou viver como kamikaze. Isso me faz ficar de pé”. Morreu na juventude dos 36 anos.

Como voz masculina ninguém se igualou a Tim Maia. É um mistério que tenha preservado aquele timbre aveludado sabendo que, quando morreu, aos 55 anos, o rei da soul music no Brasil praticava diariamente um esporte perigoso por ele batizado de “triatlo”: um litro de uísque, doses cavalares de cocaína e muita maconha. Mas para um obeso e diabético, até que o autor de “Descobridor dos Sete Mares” e “Me Dê Motivo” foi resistente.

Rabugento e debochado, Tim não poupava nem a si mesmo: “Comecei uma dieta, cortei a bebida e comidas pesadas e, em 14 dias, perdi duas semanas”. Quanto mais aos outros: “Este país não pode dar certo. Aqui prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante se vicia e pobre é de direita”. Incomparável até nas palavras.

Mentes criativas atormentadas por variações extremas de humor, manias, fixações, dependência de álcool e drogas, que Edgar Allan Poe, outro complexo, que aos 40 anos morreu na sarjeta, provavelmente por alcoolismo, preferia entender como um íntimo e necessário entrelaçamento com a genialidade: “Resta saber se a loucura não representa, talvez, a forma mais elevada de inteligência”.

Que o diga Arthur Bispo do Rosário.

* Marcos Cardoso é jornalista, autor de “Sempre aos Domingos: Antologia de textos jornalísticos”.

 

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