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Lara não precisa de definição

* Marcos Cardoso

Não dá para começar esse texto sem um chavão: Lara Aguiar lembra Clarice Lispector. Talvez Lara não seja uma mulher tão atormentada como Clarice, mas igual a ela tem um texto considerado difícil, até metafísico. Com o seu ineditismo, já disseram que a genial escritora é tão diferente de tudo o que se conhece e se espera da literatura brasileira que a reação sempre foi colocá-la num espaço reservado da estante, separada dos movimentos literários. Só que ninguém passa desapercebido à leitura de Clarice. É possível não a entender, mas não a ignorar.

Desconfio que algo assim se dá com Lara Aguiar. A ucraniana-brasileira (ela se declarava pernambucana) pratica uma escrita espontânea, em que as palavras escorrem numa torrente de sentimentos e ideias, muitas vezes num fluxo de consciência contínuo. Lara segue esse caminho, fugindo da armadilha do exercício sofrível do narcisismo e da autocomiseração, para produzir pequenas obras-primas.

“Antes daqueles lapsos de sono, olho pra o porta-retrato no criado-mudo branco que guarda papel de bala. Mato a saudade do amor que só desfalece quando se engole a presença. Algo meio clariceano”, a autora admite, em Amoramar, como se revirando as profundezas do próprio inconsciente.

Lara também é meio Caio Fernando Abreu. A maioria das criações do contista gaúcho retrata um modo cinzento e triste de viver, uma busca inquietante pela felicidade. Ele tem um conto de loucura, chamado “Uma história de Borboletas”, que trata da relação entre dois homens e dessa difícil e cotidiana necessidade de ser feliz.

Lara nos apresenta um texto chamado “Poeira de borboleta”, onde descreve o que sente também à Kafka: “Virei poeira de amor: resto da asa de uma borboleta embaixo da cadeira.” É a dor e a solidão da poesia.

Ela ouve e digere o que diz Fernando Pessoa: “Ser poeta não é uma ambição minha/É a minha maneira de estar sozinho.”; e sente sua angústia: “Não sou nada./Nunca serei nada./Não posso querer ser nada./À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”; a mesma angústia do nosso poetinha maior, Carlos Drummond de Andrade: “Tenho apenas duas mãos/e o sentimento do mundo”.

“Como dizem, estamos sempre indo, não importa pra onde. Esse ‘indo’ é que lança, no gerúndio mesmo, uma continuidade de dúvidas. E por isso desci ao grau mais baixo da letargia, descarreguei pesos e construções, gastei créditos de sonhos e utopias. Não tenho mais planos, só o presente. E me contento. Ou não.”, diz a nossa autora, como se dialogasse com eles (inNão-ser do espaço).

Alguém há de perguntar: como definir os escritos de Lara Aguiar? Ela adjetiva os substantivos, com ela as palavras ganham sentimento. É uma prosa poética muito peculiar, pelo uso de temas específicos e figuras de estilo próprias da poesia. Ao mesmo tempo, se não tem pretensão de fazer uma narrativa, ela causa excitação e emotividade, efeitos próprios do conto.

Mas é uma definição o que buscamos? “Escrevo pesadelos e cons-des-truo amor. Não sei bancar sorrisos e dançar vaidades. Meu mundo é amanhã e não me sento na incerteza. Quero o que não diz respeito a mim, mas acho que desejar o avesso do destino é a maior volúpia que pode existir. E agora cansei desses fatos. Almejo ser outra que não aquela de sempre, para talvez assim recortar a dor de ser carne, sangue e consciência” (Desconstruções).

Aliás, a introspecção de Lara, o constante mergulho no seu mundo, esse monólogo interior, tudo isso é muito clariceano também. “Nem sei onde fui deixar meu lenço cheio de memórias. Deve ter sido a fúria da chuva que carregou minhas saudades, antes marcadas num pano velho e empoeirado” (Amor contido, ódio enlatado).

Ela não se fecha aos sonhos e sentimentos que a cercam, “O mundo diz sim ao absurdo. Eu digo não ao mundo” (Muda de maré contrária), embora reconheça que não é fácil, “As marés deixam-se levar, não sabem fazer outra coisa” (Como uma maré), e que o fardo pode ser pesado demais:

“Queria uma concha para me esconder desse mar rotineiro e pesadamente salgado” (Destinada ao vento).

Mas ela busca uma alternativa: “Eu queria ser uma música, daquelas que deliram por si, que também são absorvidas pelos poros, entram na veia da realidade e transformam a seca em água de sentimentos” (Queria ser uma música).

Sonha: “Meu sonho? Gastar cada bônus de sentimentos nesta vida e neutralizar o vazio-hiato do tempo” (Vazio-hiato do tempo). E acredita: “A esperança é pra quem não tem medo de levantar o olhar de dentro e recomeçar. Sempre” (Se somos assim…).

Dá para acreditar em Lara. Seus sonhos e sentimentos são sinceros e verossímeis.

E a propósito do título do livro, Libertas tanto pode significar uma ação como um estado. Mais apropriadamente, é poder exercer livremente a sua vontade. Libertas são as palavras conduzidas por Lara Aguiar. Que prendem e fazem pensar.

(Apresentação do livro da jornalista e escritora Lara Aguiar, “Libertas”)

* Marcos Cardoso é jornalista, autor de “Sempre aos Domingos: Antologia de textos jornalísticos”.

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